Básico em Redução de Danos

 BÁSICO EM REDUÇÃO DE DANOS

 

 

Fundamentos da Redução de Danos e Política sobre Drogas

História e Conceitos da Redução de Danos 

 

A Redução de Danos (RD) é uma estratégia de saúde pública e social que busca minimizar as consequências negativas associadas ao uso de drogas, sem necessariamente exigir a abstinência total. Essa abordagem parte do reconhecimento de que o uso de substâncias psicoativas é um fenômeno complexo, presente em todas as sociedades e períodos históricos, e que políticas centradas apenas na repressão ou abstinência muitas vezes falham em proteger a saúde e a dignidade das pessoas. A RD representa, portanto, uma mudança de paradigma nas políticas sobre drogas, valorizando o cuidado, os direitos humanos e o protagonismo do usuário.

Evolução histórica da política de drogas

Historicamente, as políticas relacionadas às drogas foram marcadas por posturas moralistas e repressivas. Durante o século XX, especialmente após a Conferência de Haia (1912) e a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU (1961), consolidou-se uma política internacional baseada na proibição e criminalização do uso e do comércio de drogas. Esse modelo, conhecido como “guerra às drogas”, teve grande influência dos Estados Unidos e espalhou-se por diversos países, priorizando o controle policial e o encarceramento em detrimento da prevenção e do tratamento.

A partir das décadas de 1970 e 1980, começaram a surgir críticas a esse modelo punitivo. Pesquisadores e profissionais de saúde observaram que a repressão não reduzia o consumo e, em muitos casos, agravava problemas sociais e sanitários, como a marginalização de usuários e o aumento de infecções por HIV e hepatites. A necessidade de estratégias mais realistas e humanas deu origem a um novo olhar sobre a questão: a Redução de Danos.

O surgimento da Redução de Danos na Europa

A Redução de Danos emergiu na Europa como resposta a crises de saúde pública associadas ao uso de drogas injetáveis. Na década de 1980, países como Reino Unido, Holanda e Suíça enfrentaram o aumento alarmante de casos de HIV/AIDS entre pessoas que compartilhavam seringas contaminadas. Diante da ineficácia das abordagens repressivas, governos e organizações comunitárias começaram a implementar programas de troca de seringas, distribuição de insumos e educação em saúde, com o objetivo de reduzir a transmissão de doenças e promover o acesso a cuidados básicos.

Essas experiências mostraram resultados positivos rapidamente, diminuindo infecções e fortalecendo

vínculos entre profissionais de saúde e usuários. A partir desse movimento, consolidou-se o conceito de que é possível reduzir danos sem exigir abstinência, reconhecendo o direito das pessoas a receber cuidado e informação, independentemente de seu estágio de consumo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) passaram a reconhecer oficialmente a RD como uma estratégia eficaz e ética de saúde pública.

O contexto brasileiro

No Brasil, a Redução de Danos começou a ser discutida no final da década de 1980, principalmente em decorrência da epidemia de HIV/AIDS entre usuários de drogas injetáveis. O primeiro programa oficial surgiu em 1989, na cidade de Santos (SP), com ações voltadas à troca de seringas e à educação em saúde. Apesar de enfrentar resistência inicial por parte de setores conservadores e até de órgãos governamentais, a proposta foi gradualmente incorporada a políticas públicas de saúde e assistência social.

Nos anos 1990 e 2000, o Brasil se destacou como referência latino-americana em políticas de RD, especialmente após a criação da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Essa política incluiu a RD como um dos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS), integrando-a às ações dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). A atuação das equipes de saúde passou a valorizar a escuta qualificada, o respeito à autonomia e o fortalecimento de vínculos comunitários, substituindo a lógica punitiva por uma abordagem centrada no cuidado e na dignidade humana.

Entretanto, o cenário brasileiro também tem sido marcado por disputas ideológicas. Em diferentes períodos, políticas públicas oscilaram entre a valorização da RD e o retorno de práticas abstencionistas ou moralistas. Ainda assim, a experiência acumulada em programas municipais, estaduais e comunitários demonstra que a RD é uma estratégia eficaz para reduzir danos sociais e de saúde, ampliar o acesso a serviços e promover cidadania.

Princípios básicos da abordagem

A Redução de Danos baseia-se em princípios éticos, sociais e sanitários que orientam práticas de cuidado centradas na pessoa. Entre seus fundamentos, destacam-se:

1.     Respeito à autonomia – reconhece que cada indivíduo tem o direito de decidir sobre seu próprio corpo e seus modos de vida, sem coerção ou julgamento.

2.     Direitos humanos – combate o estigma e a criminalização de pessoas que usam drogas,

promovendo inclusão social e acesso a direitos básicos.

3.     Cuidado integral – considera a saúde como um processo amplo que envolve fatores físicos, psicológicos, sociais e culturais.

4.     Redução de riscos e danos – prioriza estratégias práticas que diminuam consequências negativas do uso, como infecções, overdoses e exclusão social.

5.     Participação social – valoriza o protagonismo das pessoas usuárias e das comunidades na construção das ações e políticas de cuidado.

6.     Acolhimento e vínculo – estabelece relações de confiança entre profissionais e usuários, fortalecendo o cuidado continuado.

Esses princípios traduzem uma ética do cuidado que se contrapõe à lógica da punição e do isolamento. A RD reconhece que o uso de drogas é um fenômeno social e que o enfrentamento dos danos associados deve envolver políticas públicas integradas, baseadas em evidências científicas e respeito aos direitos humanos.

Considerações finais

A história da Redução de Danos mostra que ela não é apenas uma estratégia técnica, mas uma filosofia de cuidado que se fundamenta na solidariedade, no respeito e na inclusão. Sua consolidação representa um avanço civilizatório na forma de lidar com o uso de drogas, deslocando o foco da punição para a proteção da vida. No Brasil, apesar dos desafios políticos e sociais, a experiência acumulada em serviços e comunidades demonstra que a RD é uma abordagem necessária e eficaz para a promoção da saúde pública, a prevenção de agravos e o fortalecimento da cidadania.

Referências bibliográficas

BRASIL. Ministério da Saúde. Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD). Diretrizes para a Política Nacional sobre Drogas. Brasília, 2018.
COTRIM, Beatriz; GIGLIOTTI, Adriana. Redução de danos: uma política em construção. São Paulo: Hucitec, 2009.
FIOROTTI, Kellen; SOARES, Camila. Redução de danos e saúde pública no Brasil. Revista Psicologia & Sociedade, v. 29, n. 2, 2017.
TAVARES, Letícia; BASTOS, Francisco I. Políticas de drogas e redução de danos: avanços e retrocessos no contexto brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 1, 2020.
UNAIDS. Harm Reduction: Evidence, Impacts and Challenges. Geneva: United Nations, 2019.
WHO. Guidelines for the Psychosocially Assisted Pharmacological Treatment of Opioid Dependence. Geneva: World Health Organization, 2009.


Políticas Públicas e Marco Legal no Brasil

 

As

políticas públicas sobre drogas no Brasil constituem um campo complexo e dinâmico, marcado por disputas ideológicas, avanços institucionais e desafios históricos. Elas envolvem diferentes setores do Estado, como saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça, e refletem a necessidade de equilibrar estratégias de prevenção, tratamento e repressão, com base nos princípios dos direitos humanos e da cidadania. O marco legal e institucional brasileiro evoluiu nas últimas décadas, incorporando a Redução de Danos como uma das abordagens legítimas de cuidado, ainda que de forma desigual entre os diferentes governos e contextos políticos.

A Política Nacional sobre Drogas

Política Nacional sobre Drogas (PNAD) é o principal instrumento que orienta as ações do governo brasileiro no campo das drogas. Sua origem remonta à década de 1990, quando o país começou a sistematizar diretrizes voltadas para prevenção, tratamento, repressão ao tráfico e reinserção social. A primeira PNAD foi aprovada em 2005 e atualizada em 2019, passando por reformulações que expressam mudanças na forma como o Estado entende o fenômeno do uso de drogas.

A versão de 2005, construída sob forte influência da saúde pública e dos direitos humanos, incorporava a Redução de Danos (RD) como uma diretriz central. Ela reconhecia o uso de substâncias psicoativas como questão de saúde e não apenas de segurança, incentivando ações de prevenção e cuidado integral. Já a PNAD de 2019, revisada pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), reforçou a abstinência como foco principal das políticas públicas, reduzindo a ênfase na RD, o que gerou críticas de setores acadêmicos e profissionais da saúde.

Mesmo com essas mudanças, a PNAD continua sendo o documento norteador que define princípios e estratégias intersetoriais, com destaque para:

  • Prevenção ao uso indevido de drogas, com base em evidências científicas e educação;
  • Cuidado e tratamento integral de pessoas com problemas decorrentes do uso de substâncias;
  • Reinserção social e econômica de usuários e dependentes químicos;
  • Combate ao tráfico ilícito e à criminalidade associada;
  • Promoção de estudos e pesquisas sobre drogas e políticas públicas.

A PNAD também reafirma o papel dos entes federados — União, estados e municípios — na formulação e execução das ações, de forma articulada e complementar, integrando os diferentes sistemas de políticas sociais.

O papel do SUS e do SUAS na política sobre drogas

Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema

Único de Assistência Social (SUAS) são pilares fundamentais da política brasileira sobre drogas, atuando de maneira integrada na atenção, acolhimento e reinserção social de pessoas que usam substâncias.

No âmbito do SUS, a atenção ao uso de álcool e outras drogas está inserida na Política Nacional de Saúde Mental, especialmente por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa rede organiza os serviços de forma descentralizada e comunitária, oferecendo cuidado continuado e humanizado. Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) são o principal ponto de referência dessa rede, responsáveis por oferecer atendimento multiprofissional, atividades terapêuticas, suporte familiar e ações de Redução de Danos. O SUS reconhece que o consumo de drogas é um fenômeno multifatorial e que o cuidado deve respeitar a autonomia e o contexto social de cada pessoa.

Já o SUAS atua na dimensão social do problema, oferecendo suporte às vulnerabilidades que atravessam o uso de drogas, como desemprego, pobreza, rompimento de vínculos familiares e exclusão social. Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) desenvolvem ações de acolhimento, encaminhamento e acompanhamento familiar, articulando-se com os serviços de saúde e educação. O SUAS também tem papel importante na reinserção social e econômica, apoiando projetos de capacitação e geração de renda.

A integração entre SUS e SUAS é considerada essencial para a efetividade das políticas sobre drogas, pois permite uma abordagem intersetorial que une o cuidado clínico, a proteção social e a promoção da cidadania.

O papel da SENAD

Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) é o órgão do governo federal responsável por coordenar e articular as ações da Política Nacional sobre Drogas. Criada em 1998, a SENAD foi inicialmente vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e, posteriormente, passou por diferentes reestruturações institucionais, refletindo as mudanças de enfoque da política brasileira.

As atribuições da SENAD incluem:

  • Elaborar e implementar diretrizes da PNAD;
  • Coordenar políticas de prevenção, tratamento, reinserção social e repressão ao tráfico;
  • Promover capacitações e campanhas educativas;
  • Apoiar a produção de pesquisas e dados sobre drogas;
  • Integrar políticas de diferentes ministérios e esferas governamentais.

Um dos avanços promovidos pela SENAD foi o incentivo à formação de profissionais por meio de programas

dos avanços promovidos pela SENAD foi o incentivo à formação de profissionais por meio de programas educacionais e cursos online, como o “SUPERA” (Sistema para Detecção do Uso Abusivo e Dependência de Substâncias Psicoativas: Encaminhamento, Intervenção Breve, Reinserção Social e Acompanhamento), voltado à capacitação de trabalhadores da saúde, educação e assistência social.

A SENAD também atua na articulação com organismos internacionais e na implementação de políticas baseadas em evidências científicas, ainda que sua atuação, em determinados períodos, tenha sido influenciada por orientações mais repressivas. De modo geral, o órgão representa um espaço de formulação e gestão estratégica das políticas nacionais sobre drogas, promovendo ações intersetoriais e campanhas de conscientização.

Legislações e diretrizes

O marco legal brasileiro sobre drogas é composto por leis, decretos e resoluções que definem competências, responsabilidades e diretrizes de ação. Entre os principais instrumentos, destacam-se:

  • Lei nº 11.343/2006 – institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), que regula a prevenção, atenção e repressão ao tráfico. Essa lei substituiu a antiga Lei nº 6.368/1976 e introduziu uma distinção entre usuário e traficante, priorizando medidas educativas e de tratamento em vez da punição penal para o uso pessoal.
  • Decreto nº 9.761/2019 – aprova a atual Política Nacional sobre Drogas, reforçando o papel da abstinência e redefinindo a atuação da SENAD e do CONAD.
  • Portarias do Ministério da Saúde, como a nº 3.088/2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e a nº 1.028/2005, que reconhece a Redução de Danos como prática legítima no âmbito do SUS.
  • Normas do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), que integram o SUAS às políticas sobre drogas, garantindo proteção social básica e especial.

Essas legislações expressam o esforço de construir uma política mais equilibrada, que reconheça o uso de drogas como questão de saúde e cidadania. Apesar de avanços, persistem desafios na aplicação prática, devido à falta de recursos, descontinuidade de programas e disputas entre modelos de tratamento.

Considerações finais

As políticas públicas e o marco legal sobre drogas no Brasil refletem uma trajetória de avanços e contradições. A consolidação da PNAD, a atuação do SUS e do SUAS e a coordenação da SENAD representam conquistas importantes, que ampliaram a visão sobre o uso de drogas e favoreceram

abordagens mais humanas e integradas. No entanto, ainda há tensões entre perspectivas punitivas e de cuidado, o que exige a manutenção de um debate permanente e o fortalecimento de políticas baseadas em evidências, respeito à diversidade e garantia dos direitos humanos.

A consolidação de uma política nacional efetiva depende da intersetorialidade, do investimento em prevenção e do reconhecimento de que o enfrentamento do uso problemático de drogas deve ocorrer com empatia, acolhimento e compromisso ético com a vida.

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). Diário Oficial da União, Brasília, 2006.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Brasília, 2011.
BRASIL. Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Aprova a Política Nacional sobre Drogas. Brasília, 2019.
BRASIL. Ministério da Cidadania / SENAD. Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília, 2020.
COTRIM, Beatriz; GIGLIOTTI, Adriana. Políticas públicas e redução de danos: desafios contemporâneos. São Paulo: Hucitec, 2015.
FIOROTTI, Kellen; SOARES, Camila. A intersetorialidade nas políticas sobre drogas no Brasil. Revista Saúde e Sociedade, v. 28, n. 4, 2019.
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WORLD HEALTH ORGANIZATION. International Standards on Drug Use Prevention. Geneva: WHO, 2018.


Modelos de Abordagem e Prevenção

 

As políticas e práticas voltadas ao uso de drogas se estruturam em torno de diferentes modelos de abordagem e prevenção, que refletem concepções distintas sobre o fenômeno do consumo de substâncias psicoativas. Ao longo da história, as estratégias oscilaram entre enfoques moralistas, médicos, repressivos e humanitários, influenciadas por contextos políticos, culturais e científicos. No cenário contemporâneo, compreende-se que a prevenção e o cuidado devem ser pautados por evidências, pela intersetorialidade e pelo respeito aos direitos humanos, considerando a complexidade social e individual que envolve o uso de drogas.

Estratégias de prevenção

A prevenção é um dos pilares fundamentais das políticas públicas sobre drogas e tem como objetivo evitar ou retardar o início do consumo, reduzir riscos e minimizar danos associados ao uso. Tradicionalmente, a literatura especializada

classifica as ações preventivas em três tipos: prevenção primária, secundária e terciária, embora modelos mais recentes utilizem a terminologia prevenção universal, seletiva e indicada, conforme as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

prevenção universal abrange toda a população, independentemente de fatores de risco, e inclui programas educativos em escolas, campanhas de conscientização e políticas de fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Já a prevenção seletiva direciona-se a grupos vulneráveis ou expostos a maior risco, como adolescentes em contextos de exclusão social ou famílias em situação de vulnerabilidade. Por fim, a prevenção indicada destina-se a indivíduos que já apresentam sinais de uso problemático ou comportamentos de risco, visando evitar a progressão para quadros de dependência.

As estratégias eficazes de prevenção compartilham alguns elementos fundamentais: baseiam-se em evidências científicas, utilizam linguagem acessível, valorizam o diálogo e fortalecem a autonomia dos sujeitos. Intervenções centradas apenas em mensagens de medo, coerção ou punição — como as campanhas “drogas: diga não” — mostraram-se ineficazes e, em muitos casos, contraproducentes, por não dialogarem com a realidade dos indivíduos nem oferecerem alternativas concretas de enfrentamento.

A prevenção, portanto, deve ser compreendida como processo educativo e social contínuo, que envolve escolas, famílias, serviços de saúde e redes comunitárias. A promoção da saúde, o fortalecimento de vínculos afetivos e a ampliação de oportunidades sociais são componentes essenciais de uma política preventiva sustentável e humanizada.

Abordagem abstencionista x abordagem redutora de danos

Historicamente, duas principais correntes orientam as políticas e práticas relacionadas ao uso de drogas: a abordagem abstencionista e a abordagem redutora de danos. Essas perspectivas não são mutuamente excludentes, mas refletem diferentes concepções éticas e metodológicas sobre o cuidado e a prevenção.

abordagem abstencionista parte da ideia de que o único modo seguro e aceitável de lidar com as drogas é não usá-las. Está associada a políticas de caráter moral, médico ou religioso que entendem o consumo como comportamento desviado, doença ou falta de autocontrole. No campo das políticas públicas, essa visão se expressa em ações voltadas à abstinência total, frequentemente associadas à repressão policial, à

internação compulsória e a programas de cunho terapêutico religioso. Embora a abstinência possa ser uma meta legítima para determinados indivíduos, a adoção exclusiva desse paradigma ignora a diversidade dos modos de uso e os contextos socioculturais envolvidos, além de marginalizar pessoas que não desejam ou não conseguem interromper o consumo.

Por outro lado, a abordagem redutora de danos (RD) propõe um modelo mais pragmático e humanista. Ela reconhece que o uso de drogas é um fenômeno social presente em todas as culturas e que, portanto, é possível e necessário desenvolver estratégias para minimizar os danos à saúde e à vida das pessoas, mesmo quando a abstinência não é o objetivo imediato. Essa perspectiva surgiu na Europa nas décadas de 1980 e 1990, principalmente como resposta à epidemia de HIV/AIDS entre usuários de drogas injetáveis, e rapidamente se consolidou como política pública eficaz em diversos países.

A RD se baseia em princípios como respeito à autonomia, não discriminação, promoção de direitos humanos e participação comunitária. Suas ações incluem, entre outras, programas de troca de seringas, distribuição de insumos de higiene e proteção, espaços de convivência, educação em saúde e oferta de tratamento voluntário. No Brasil, a RD foi incorporada oficialmente às políticas de saúde a partir da década de 1990, com o reconhecimento do Ministério da Saúde e a inclusão nos programas de atenção psicossocial.

Enquanto a abordagem abstencionista tende a considerar o uso de drogas como falha moral ou patologia, a RD o compreende como prática humana complexa, que requer acolhimento, cuidado e diálogo. A polarização entre essas duas perspectivas ainda marca o debate público brasileiro, mas há um consenso crescente entre especialistas de que políticas equilibradas devem integrar ambas, respeitando as escolhas individuais e oferecendo diferentes caminhos de cuidado.

Perspectivas contemporâneas

As perspectivas contemporâneas sobre modelos de abordagem e prevenção buscam superar dicotomias simplistas entre proibição e liberalização, ou entre abstinência e Redução de Danos. O desafio atual é construir políticas intersetoriais, baseadas em evidências e orientadas pelos direitos humanos, capazes de responder à complexidade do fenômeno das drogas.

No campo da prevenção, as abordagens mais modernas enfatizam a promoção da saúde, conceito que ultrapassa a simples ausência de doença e envolve bem-estar físico, mental e social. Programas de prevenção eficazes

combinam educação crítica, fortalecimento comunitário e participação juvenil, evitando discursos moralistas e priorizando a informação de qualidade. A escola, nesse contexto, é vista como espaço privilegiado de diálogo, e não de repressão ou punição.

Outra tendência contemporânea é a integração das políticas de drogas com outras agendas públicas, como saúde mental, segurança pública, direitos humanos e políticas de juventude. A intersetorialidade é essencial para evitar fragmentação e garantir que ações preventivas sejam complementares, não sobrepostas. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) são exemplos de políticas que materializam essa integração, oferecendo suporte clínico e social.

As políticas de base comunitária também ganham destaque. Experiências locais de prevenção e cuidado, conduzidas por organizações sociais e lideranças comunitárias, têm mostrado grande efetividade por estarem próximas da realidade das pessoas e valorizarem saberes locais. Essas práticas reforçam a noção de que o enfrentamento dos problemas relacionados às drogas deve ocorrer de forma participativa e contextualizada.

Por fim, as perspectivas contemporâneas reconhecem a importância da descriminalização do uso pessoal e da regulação de substâncias como estratégias de saúde pública. Países como Portugal, Uruguai e Canadá demonstraram que políticas menos repressivas podem reduzir danos e ampliar o acesso a serviços. No Brasil, embora o tema ainda seja objeto de controvérsia, há um movimento crescente em defesa de políticas mais equilibradas e centradas na dignidade humana.

Considerações finais

Os modelos de abordagem e prevenção ao uso de drogas evoluíram significativamente nas últimas décadas. O paradigma exclusivamente punitivo e abstencionista vem sendo gradualmente substituído por perspectivas mais abrangentes, que reconhecem o uso de drogas como questão de saúde pública e social. A Redução de Danos consolidou-se como um dos principais referenciais éticos e práticos nesse campo, promovendo o cuidado com base na autonomia, na inclusão e no respeito à diversidade.

A efetividade das políticas preventivas depende da combinação entre ciência, empatia e intersetorialidade. É fundamental que o Estado e a sociedade reconheçam que a prevenção não se limita à proibição, mas envolve educação, cultura, afeto e oportunidades de vida digna. Assim, os modelos contemporâneos de abordagem apontam para uma política de drogas que valoriza a vida e o

cuidado acima da punição e do estigma.

Referências bibliográficas

BRASIL. Ministério da Saúde. Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD). Diretrizes para a Política Nacional sobre Drogas. Brasília, 2018.
COTRIM, Beatriz; GIGLIOTTI, Adriana. Redução de danos: uma política em construção. São Paulo: Hucitec, 2009.
FIOROTTI, Kellen; SOARES, Camila. Modelos de abordagem e prevenção ao uso de drogas: desafios e avanços. Revista Psicologia & Sociedade, v. 30, n. 2, 2018.
MACHADO, Leonardo; NERY FILHO, Antônio. Abordagens contemporâneas sobre o uso de drogas e políticas públicas. Salvador: EDUFBA, 2019.
TAVARES, Letícia; BASTOS, Francisco I. Entre a abstinência e a redução de danos: dilemas da política brasileira de drogas. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 7, 2020.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). International Standards on Drug Use Prevention. Geneva: WHO, 2018.
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