Justiça e Práticas Restaurativas

 JUSTIÇA E PRÁTICAS RESTAURATIVAS


Definição e Origens da Justiça Restaurativa

 

Introdução

A Justiça Restaurativa tem ganhado crescente relevância como uma abordagem alternativa à Justiça tradicional, especialmente em contextos nos quais a resposta estatal a conflitos se mostra insatisfatória ou incapaz de promover a pacificação social. Ao contrário da Justiça retributiva, baseada na punição, a Justiça Restaurativa procura restaurar as relações rompidas pelo delito por meio do diálogo, responsabilização ativa e reparação dos danos causados. Neste texto, busca-se apresentar as definições fundamentais da Justiça Restaurativa, seus principais elementos distintivos em relação ao modelo penal tradicional e, sobretudo, traçar suas origens históricas e culturais, tanto em contextos ocidentais quanto em práticas ancestrais de povos originários.

 

1. Definição da Justiça Restaurativa

A Justiça Restaurativa pode ser entendida como uma filosofia e um conjunto de práticas voltadas à resolução de conflitos que buscam reparar os danos causados a pessoas e relações, em vez de simplesmente punir o infrator. De acordo com Zehr (2008), um dos principais teóricos da área, "a Justiça Restaurativa é um processo no qual todas as partes afetadas por um ato de injustiça se reúnem para resolver coletivamente como lidar com as consequências do delito e suas implicações para o futuro".

 

A abordagem restaurativa parte de uma compreensão relacional do crime. Ao invés de vê-lo apenas como uma violação da lei do Estado, ela o enxerga como uma ruptura de relações humanas. Assim, a prioridade passa a ser a reparação dos danos às vítimas, a responsabilização consciente do infrator e a reintegração de todos os envolvidos à comunidade. Segundo Bazemore e Umbreit (2001), o modelo restaurativo promove uma justiça centrada na vítima, mas que também envolve ativamente o ofensor e a comunidade como elementos indispensáveis à restauração do equilíbrio social.

 

Dentre os princípios que fundamentam essa abordagem, destacam-se: a participação voluntária, a escuta ativa, o reconhecimento de responsabilidades, o foco nas necessidades das vítimas e o objetivo de restaurar relações. Os mecanismos mais conhecidos de operacionalização da Justiça Restaurativa incluem os círculos restaurativos, as conferências familiares, as mediações vítima-ofensor e os fóruns de diálogo.

 

2. Origens Culturais e Ancestrais

Apesar de seu reconhecimento contemporâneo como uma inovação jurídica, as raízes da Justiça Restaurativa remontam

de seu reconhecimento contemporâneo como uma inovação jurídica, as raízes da Justiça Restaurativa remontam a práticas ancestrais de resolução de conflitos utilizadas por diversos povos indígenas e comunidades tradicionais. Em muitos desses contextos, os conflitos não eram tratados por meio da punição estatal, mas sim por mecanismos coletivos de reconciliação e reparação.

 

Um exemplo emblemático são os povos Māori, da Nova Zelândia, que utilizavam o modelo whānau conferencing, um tipo de conferência familiar em que a comunidade e os envolvidos buscavam soluções restaurativas para o conflito. Essa prática inspirou diretamente a implementação das conferências restaurativas no sistema juvenil da Nova Zelândia a partir dos anos 1990 (MAXWELL; MORRIS, 2006).

 

Outros exemplos incluem as práticas de mediação comunitária dos inuítes no Canadá, os conselhos de anciãos na África Subsaariana e os círculos de fala dos povos nativos da América do Norte. Em todos esses casos, a ênfase está em restaurar o equilíbrio social, promover o diálogo e fortalecer os laços comunitários, ao invés de isolar e punir.

 

Essas práticas tradicionais foram muitas vezes ignoradas ou reprimidas pelo sistema jurídico ocidental, que se baseou em princípios de autoridade estatal e punição formal. No entanto, a partir do final do século XX, pesquisadores, juristas e educadores passaram a reconhecer o valor desses saberes ancestrais, incorporando seus elementos à concepção moderna de Justiça Restaurativa.

 

3. Desenvolvimento Contemporâneo

O desenvolvimento moderno da Justiça Restaurativa começou a tomar forma nas décadas de 1970 e 1980, principalmente em países como Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia. O caso considerado pioneiro ocorreu em 1974, em Kitchener, Ontário (Canadá), quando dois jovens envolvidos em vandalismo foram encaminhados para um encontro com as vítimas, facilitado por um agente de condicional e um membro da comunidade menonita. Esse caso originou o chamado Victim-Offender Reconciliation Program (VORP), que viria a influenciar a criação de centenas de programas semelhantes no mundo (ZEHR, 2002).

 

Nos Estados Unidos, o movimento de Justiça Restaurativa ganhou força com o apoio de organizações comunitárias, religiosas e acadêmicas, especialmente aquelas ligadas à promoção dos direitos das vítimas e à crítica ao encarceramento em massa. Já na Nova Zelândia, a incorporação das práticas indígenas ao sistema de justiça juvenil resultou em reformas significativas, com o uso obrigatório

das à promoção dos direitos das vítimas e à crítica ao encarceramento em massa. Já na Nova Zelândia, a incorporação das práticas indígenas ao sistema de justiça juvenil resultou em reformas significativas, com o uso obrigatório das conferências familiares restaurativas antes da imposição de medidas punitivas formais (MAXWELL; MORRIS, 2006).

 

Na Europa, países como Noruega, Finlândia e Reino Unido também implementaram programas-piloto de Justiça Restaurativa, principalmente voltados à mediação penal e à reintegração de jovens infratores. A União Europeia passou a incentivar políticas públicas baseadas nessa abordagem a partir dos anos 2000, considerando-a compatível com os princípios de cidadania, inclusão social e participação democrática (EUROPEAN FORUM FOR RESTORATIVE JUSTICE, 2011).

 

4. A Justiça Restaurativa no Brasil

No Brasil, a Justiça Restaurativa começou a ser discutida de forma mais estruturada nos anos 2000, com apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Em 2005, foram iniciados os primeiros projetos-piloto em estados como Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal, com foco no atendimento a adolescentes em conflito com a lei e na mediação escolar (CNJ, 2022).

Desde então, diversas resoluções normativas foram publicadas para institucionalizar e expandir a prática restaurativa, como a Resolução CNJ nº 225/2016, que estabelece diretrizes para a implementação da Justiça Restaurativa no Poder Judiciário. Essa resolução reconhece a importância de ações interinstitucionais, da formação de facilitadores e da articulação com políticas públicas de educação, assistência social e segurança.

 

A aplicação da Justiça Restaurativa no Brasil tem ocorrido em diferentes esferas: no sistema de justiça juvenil, em escolas públicas, em comunidades vulneráveis e até mesmo no sistema prisional. Diversas experiências bemsucedidas têm sido documentadas, demonstrando o potencial transformador da abordagem restaurativa, especialmente na prevenção de reincidência, na redução da violência e na reconstrução de vínculos comunitários.

 

5. Considerações Finais

A Justiça Restaurativa representa uma mudança de paradigma em relação ao modo tradicional de se lidar com o crime e os conflitos. Ao deslocar o foco da punição para a reparação, e do Estado para a comunidade, essa abordagem resgata práticas ancestrais e promove uma justiça mais humana, participativa e inclusiva. Suas origens estão enraizadas em culturas

diversas, que sempre valorizaram o diálogo, a escuta e a reconciliação como formas legítimas de resolução de problemas.

 

Embora os desafios para sua plena implementação ainda sejam grandes – incluindo resistências institucionais, falta de recursos e desconhecimento por parte da população – a Justiça Restaurativa tem se mostrado uma ferramenta promissora para transformar não apenas o sistema de justiça, mas também as relações sociais e a cultura da paz.


Referências Bibliográficas

BAZEMORE, Gordon; UMBREIT, Mark. A comparison of four restorative conferencing models. Juvenile Justice Bulletin, Office of Juvenile Justice and Delinquency Prevention, 2001.

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Justiça Restaurativa. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justica-restaurativa/. Acesso em: 05 mai. 2025.

EUROPEAN FORUM FOR RESTORATIVE JUSTICE. Restorative

Justice: An Overview. Leuven: EFRJ, 2011.

MAXWELL, Gabrielle; MORRIS, Allison. Youth Justice in New Zealand: Restorative Justice in Practice? Journal of Social Issues, v. 62, n. 2, p. 239– 258, 2006.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre a Justiça e seus conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2008.

ZEHR, Howard. The Little Book of Restorative Justice. Intercourse, PA: Good Books, 2002.


 

Diferença entre Justiça Retributiva e Justiça Restaurativa

 

Introdução

A forma como uma sociedade lida com o crime e a violação de normas reflete não apenas seu sistema jurídico, mas também sua concepção de justiça, valores e prioridades sociais. Ao longo da história, diferentes modelos de justiça foram adotados para lidar com a criminalidade. Entre os mais discutidos na contemporaneidade estão os modelos de Justiça Retributiva e Justiça Restaurativa. Embora ambos visem tratar as consequências de condutas consideradas ilícitas, suas abordagens são substancialmente distintas, tanto em relação à finalidade quanto aos meios utilizados. Este texto propõe-se a apresentar e analisar essas duas formas de justiça, explorando suas características, fundamentos filosóficos, práticas associadas e implicações para as vítimas, ofensores e a comunidade.

 

1. Fundamentos da Justiça Retributiva

A Justiça Retributiva é o modelo dominante nos sistemas penais contemporâneos, sendo herdeira de uma longa tradição jurídico-filosófica ocidental que remonta ao direito romano e às teorias filosóficas clássicas da punição. Segundo essa abordagem, o crime é concebido como uma infração à lei do Estado e, portanto, exige uma resposta proporcional que

Justiça Retributiva é o modelo dominante nos sistemas penais contemporâneos, sendo herdeira de uma longa tradição jurídico-filosófica ocidental que remonta ao direito romano e às teorias filosóficas clássicas da punição. Segundo essa abordagem, o crime é concebido como uma infração à lei do Estado e, portanto, exige uma resposta proporcional que implique punição ao infrator.

 

Autores como Immanuel Kant e G.W.F. Hegel defenderam a punição como uma exigência moral, entendendo que o infrator deve receber uma sanção equivalente ao mal causado, como forma de restabelecer a ordem jurídica. Esse princípio, conhecido como retribuição moral, sustenta que punir é uma exigência da justiça, independentemente de efeitos utilitários como prevenção ou ressocialização (KANT, 2003).

 

No contexto contemporâneo, a Justiça Retributiva estrutura-se em torno de três eixos principais:

       Identificação do culpado, com base na investigação e no julgamento.

       Aplicação de uma pena proporcional, fundamentada na gravidade do crime.

       Execução da sanção, geralmente privativa de liberdade.

Nesse modelo, o papel central é desempenhado pelo Estado, que representa a sociedade e decide sobre a culpa e a pena. A vítima ocupa um papel secundário, muitas vezes restrito ao de testemunha, sendo seu sofrimento e necessidades frequentemente ignorados pelo processo (ZEHR, 2008).

 

2. Fundamentos da Justiça Restaurativa

A Justiça Restaurativa, por sua vez, propõe uma abordagem alternativa, na qual o crime não é visto apenas como uma violação da lei, mas como uma ruptura de relações humanas. O foco desloca-se da punição para a reparação dos danos causados, promovendo a responsabilização ativa do infrator, o acolhimento da vítima e a participação da comunidade na construção de soluções.

 

Para Zehr (2002), considerado o "pai da Justiça Restaurativa", esta abordagem busca responder a três perguntas centrais:

1.     Quem foi prejudicado?

2.     Quais são as necessidades desses envolvidos?

3.     Quem tem a responsabilidade de reparar esse dano?

A Justiça Restaurativa parte de princípios como o respeito à dignidade de todas as partes, a centralidade das vítimas, a escuta ativa, o diálogo e o voluntariado. Ela utiliza práticas como círculos de justiça, conferências restaurativas e mediações vítima-ofensor para promover o encontro entre as partes e a busca coletiva por soluções restauradoras (BRAITHWAITE, 2002).

 

Essa forma de justiça tem raízes em práticas ancestrais de povos indígenas e comunidades

tradicionais, como os Māori da Nova Zelândia e os nativos norte-americanos, cujos modelos de resolução de conflitos sempre priorizaram a reconciliação e o equilíbrio comunitário.

 

3. Comparação entre os Modelos

Embora ambos os modelos busquem respostas para o crime, eles se diferenciam radicalmente em vários aspectos:

 

3.1 Natureza do Crime

       Justiça Retributiva: considera o crime como uma violação da lei do Estado.

       Justiça Restaurativa: considera o crime como uma violação de pessoas e relações.

 

3.2 Foco da Resposta

       Retributiva: foco na punição e na proporcionalidade da pena ao delito cometido.

       Restaurativa: foco na reparação do dano e na restauração dos laços sociais.

 

3.3 Papel das Partes Envolvidas

       Retributiva: o Estado assume o protagonismo, a vítima é marginalizada, e o infrator é passivo.

       Restaurativa: vítima, ofensor e comunidade participam ativamente do processo.

 

3.4 Forma de Responsabilização

       Retributiva: responsabilização é imposta, com sanção unilateral.

       Restaurativa: responsabilização é assumida, com compreensão das consequências e busca por reparação.


3.5 Objetivos

       Retributiva: restabelecer a ordem jurídica e dissuadir futuras infrações.

       Restaurativa: promover justiça relacional, sanar feridas, evitar reincidência e restaurar a paz social.

Essa diferença de perspectiva impacta diretamente os resultados e a eficácia das intervenções. Estudos têm demonstrado que a Justiça Restaurativa pode ser mais eficaz na redução da reincidência, no aumento da satisfação das vítimas e na responsabilização consciente do infrator (SHAPLAND et al., 2008).

 

4. Críticas e Limitações

Ambos os modelos estão sujeitos a críticas e apresentam limitações. A Justiça Retributiva é frequentemente criticada por:

       Produzir encarceramento em massa.

       Desconsiderar as necessidades da vítima.

       Falhar na prevenção da reincidência.

       Reforçar desigualdades estruturais.

 

Por outro lado, a Justiça Restaurativa enfrenta desafios como:

       Resistência cultural e institucional à mudança de paradigma.

       Falta de formação de facilitadores qualificados.

       Dificuldades em casos de crimes graves ou com vítimas indispostas a participar.

       Risco de coação ou instrumentalização da participação do ofensor.

 

Apesar disso, a Justiça Restaurativa tem sido reconhecida por organismos internacionais, como a ONU, como um instrumento valioso para a pacificação social e a transformação das dinâmicas

penais. Segundo o Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa da ONU (2006), "as práticas restaurativas podem ser adaptadas a diferentes culturas jurídicas, desde que respeitem os direitos humanos fundamentais".


5. O Caminho para uma Justiça Transformadora

A oposição entre Justiça Retributiva e Restaurativa não precisa ser vista como absoluta. Em muitos contextos, há experiências de justiças híbridas, nas quais elementos restaurativos são incorporados ao sistema penal tradicional. No Brasil, por exemplo, a Resolução CNJ nº 225/2016 incentiva práticas restaurativas dentro do Judiciário, sem necessariamente substituir as normas penais vigentes.

 

Esse caminho integrativo tem sido chamado por alguns autores de justiça transformadora, por visar não apenas a resolução do caso concreto, mas a mudança cultural das instituições e da sociedade em direção à não violência, à corresponsabilidade e à dignidade humana (WALGRAVE, 2008).

 

O futuro da justiça, portanto, parece apontar para modelos mais participativos, empáticos e sensíveis às necessidades reais das pessoas afetadas pelo crime. Isso requer investimento em formação, mudança de mentalidade e apoio político, mas oferece a promessa de um sistema mais justo, inclusivo e eficaz.

 

Conclusão

A comparação entre Justiça Retributiva e Justiça Restaurativa revela muito mais do que duas metodologias diferentes para lidar com o crime. Trata-se, na verdade, de duas visões de mundo distintas: uma baseada na punição e no controle social; a outra, na reparação, na escuta e na reconstrução dos vínculos rompidos. Embora a Justiça Retributiva ainda predomine nos sistemas jurídicos, a crescente valorização da abordagem restaurativa demonstra a necessidade de repensar a forma como lidamos com conflitos e transgressões.

 

A construção de uma cultura restaurativa não significa abandonar a legalidade ou a autoridade estatal, mas sim complementá-las com práticas que humanizam a justiça e promovem transformações reais. Em um mundo marcado por violências sistêmicas, desigualdades e rupturas sociais, a Justiça Restaurativa oferece uma resposta promissora e necessária para o nosso tempo.


Referências Bibliográficas

BRAITHWAITE, John. Restorative Justice and Responsive Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2002.

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SHAPLAND, Joanna et al. Does Restorative Justice Affect Reconviction? The Fourth Report from the Evaluation of Three Schemes. Ministry of

Justice Research Series 10/08, 2008.

WALGRAVE, Luc. Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship. Willan Publishing, 2008.

ZEHR, Howard. The Little Book of Restorative Justice. Intercourse, PA: Good Books, 2002.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: Um Novo Foco sobre Justiça e seus Conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2008.

ONU – Organização das Nações Unidas. Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa. Nova Iorque: UNODC, 2006.


 

Casos e Exemplos Iniciais da Justiça Restaurativa

 

Introdução

A Justiça Restaurativa é frequentemente considerada uma inovação no campo jurídico, embora suas raízes estejam fincadas em práticas ancestrais de comunidades tradicionais ao redor do mundo. A retomada e sistematização contemporânea dessas práticas ocorreram a partir de experiências concretas, pioneiras e exitosas em diferentes países. Esses casos iniciais não apenas demonstraram a viabilidade da abordagem restaurativa, mas também influenciaram políticas públicas, reformas legislativas e novas perspectivas no tratamento dos conflitos. Este texto tem como objetivo apresentar e analisar alguns dos principais casos e exemplos iniciais de aplicação da Justiça Restaurativa no mundo, destacando seus contextos, metodologias e resultados, bem como o papel que desempenharam na difusão do modelo restaurativo globalmente.

 

1. O Caso de Kitchener, Canadá (1974)

O exemplo mais citado na literatura como marco fundador da Justiça Restaurativa contemporânea ocorreu em 1974, na cidade de Kitchener, na província de Ontário, no Canadá. Dois jovens foram detidos após cometerem uma série de atos de vandalismo contra propriedades privadas. Em vez de seguir o caminho convencional da Justiça juvenil, um oficial de condicional, Jim Consedine, e um membro da Igreja Menonita, Mark Yantzi, propuseram uma alternativa: os jovens se encontrariam diretamente com as vítimas, admitiriam suas responsabilidades e ofereceriam reparações pelos danos causados.

 

O encontro foi realizado com sucesso. As vítimas relataram os prejuízos sofridos, os jovens expressaram remorso e um plano de compensação foi acordado. Esse episódio originou o Victim-Offender Reconciliation Program (VORP), considerado o primeiro programa formal de Justiça Restaurativa no mundo (ZEHR, 2002).

O sucesso do VORP de Kitchener levou à multiplicação de iniciativas semelhantes em outras províncias canadenses e nos Estados Unidos. Além disso, serviu de base teórica e prática para a institucionalização de programas restaurativos em

contextos escolares, comunitários e penitenciários.

 

2. Conferências Familiares na Nova Zelândia (1989)

Outro marco histórico da Justiça Restaurativa contemporânea foi a introdução das Family Group Conferences (FGC) no sistema juvenil da Nova Zelândia, a partir da aprovação da Children, Young Persons, and Their Families Act, em 1989. Essa legislação inovadora incorporou práticas tradicionais do povo Māori, que já utilizava reuniões familiares e comunitárias para lidar com transgressões e restaurar a harmonia social.

 

A Conferência Familiar Restaurativa é um encontro estruturado entre o jovem infrator, sua família, a vítima e seus apoiadores, conduzido por um facilitador treinado. O objetivo é que as partes, juntas, compreendam o que aconteceu, expressem seus sentimentos e necessidades, e construam coletivamente um plano de reparação (MAXWELL; MORRIS, 2006).

 

Os resultados da implementação das FGCs foram amplamente positivos, com taxas de satisfação elevadas entre vítimas e ofensores, redução de reincidência e fortalecimento dos vínculos familiares. Essa experiência inspirou outros países, como Austrália, Reino Unido, África do Sul e Irlanda, a adotarem modelos semelhantes de conferência restaurativa em seus sistemas de justiça juvenil.

 

3. Círculos Restaurativos entre Povos Indígenas do Canadá

No Canadá, além do VORP, desenvolveram-se experiências específicas com círculos restaurativos inspirados nas práticas indígenas de resolução de conflitos, especialmente entre os povos Cree, Inuit e Dene. Essas comunidades valorizam os círculos de fala, encontros em que todos os envolvidos são convidados a falar em igualdade de condições, promovendo a escuta ativa, o respeito mútuo e a busca por soluções consensuais.

Nos anos 1990, a cidade de Hollow Water, em Manitoba, tornou-se referência internacional com a aplicação de círculos restaurativos em casos de abuso sexual dentro da comunidade. O projeto, chamado de Hollow Water First Nation Community Holistic Healing Circle, integrou vítimas, ofensores, familiares, líderes espirituais e facilitadores em um processo longo, mas eficaz, de cura coletiva (ROSS, 1996).

 

Essas práticas demonstraram que a Justiça Restaurativa é viável mesmo em casos graves, desde que haja preparo, voluntariedade e apoio comunitário. Além disso, desafiaram o paradigma punitivo predominante e trouxeram à tona o valor dos saberes tradicionais.

 

4. Casos-Piloto no Brasil (2005 em diante)

No Brasil, os primeiros casos formais de Justiça Restaurativa

ocorreram no contexto de projetos-piloto organizados com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Ministério da Justiça e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O principal deles foi implementado no Rio Grande do Sul, em 2005, no Fórum Central de Porto Alegre, sob a coordenação da juíza Leoberto Brancher.

 

Um dos casos paradigmáticos envolveu adolescentes acusados de furto em uma escola pública. A Justiça Restaurativa foi aplicada por meio de círculos de construção de paz com a participação dos estudantes, professores, familiares e vítimas. O processo possibilitou não apenas a reparação material, mas também a restauração dos vínculos escolares e a prevenção de novas ocorrências.

 

Outras iniciativas surgiram em São Paulo, Distrito Federal, Pernambuco e Paraná, envolvendo casos escolares, familiares e de violência doméstica. Em 2016, o CNJ publicou a Resolução nº 225, estabelecendo diretrizes para a implementação    da      Justiça         Restaurativa no      Judiciário,   ampliando significativamente o alcance das práticas restaurativas no país (CNJ, 2016).

 

5. Justiça Restaurativa no Contexto Escolar

Um dos ambientes mais férteis para a aplicação inicial da Justiça Restaurativa tem sido a escola. Casos de bullying, agressões verbais e conflitos entre estudantes e professores são frequentemente mal resolvidos por meio de punições suspensivas ou expulsões, que não abordam as causas profundas dos comportamentos nem contribuem para a responsabilização consciente.

 

Nos Estados Unidos, escolas públicas em Oakland (Califórnia) implementaram com sucesso o modelo de círculos restaurativos a partir de 2007, com foco em alunos em risco de evasão e exclusão. Um dos casos emblemáticos envolveu um aluno prestes a ser expulso por repetidas infrações disciplinares. Após a realização de diversos círculos com ele, colegas, familiares e equipe escolar, o aluno não apenas evitou a expulsão, mas tornou-se facilitador de círculos em sua escola (KARP; SULLIVAN, 2016).

 

O impacto dessas ações foi mensurado em termos de redução de suspensões, melhoria no desempenho escolar e aumento da participação dos pais. Esses exemplos reforçam a potencialidade transformadora da Justiça Restaurativa para além do sistema jurídico, alcançando também os espaços educativos.

 

Conclusão

Os casos e exemplos iniciais de Justiça Restaurativa foram fundamentais para demonstrar a viabilidade e a eficácia dessa abordagem alternativa em contextos variados, desde o sistema penal até

os e exemplos iniciais de Justiça Restaurativa foram fundamentais para demonstrar a viabilidade e a eficácia dessa abordagem alternativa em contextos variados, desde o sistema penal até o ambiente escolar. A experiência de Kitchener no Canadá, as conferências familiares na Nova Zelândia, os círculos indígenas e os projetos brasileiros mostraram que é possível lidar com o conflito de maneira mais humana, relacional e inclusiva.

 

Esses casos pavimentaram o caminho para a expansão do modelo restaurativo no mundo inteiro, legitimando sua adoção por políticas públicas e instituições. Eles também nos ensinam que o sucesso da Justiça

Restaurativa depende não apenas de técnicas específicas, mas de uma mudança de mentalidade que reconheça o poder do diálogo, da escuta e da corresponsabilidade na construção da justiça.

 

Referências Bibliográficas

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 225/2016. Disponível em:

https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 05 mai. 2025.

KARP, David R.; SULLIVAN, Kate. Restorative Justice in the Classroom: A Practical Guide for Educators. Boulder: First Edition, 2016.

MAXWELL, Gabrielle; MORRIS, Allison. Youth Justice in New Zealand: Restorative Justice in Practice? Journal of Social Issues, v. 62, n. 2, p. 239– 258, 2006.

ROSS, Rupert. Returning to the Teachings: Exploring Aboriginal Justice. Toronto: Penguin Books, 1996.

ZEHR, Howard. The Little Book of Restorative Justice. Intercourse, PA: Good Books, 2002.


 

Responsabilidade, Reparação e Reintegração na Justiça Restaurativa

 

Introdução

A Justiça Restaurativa vem ganhando destaque mundial como uma alternativa viável ao modelo punitivo da Justiça criminal tradicional. Essa abordagem propõe uma mudança profunda na maneira como se compreende e se responde aos conflitos e crimes, deslocando o foco da violação da norma estatal para os impactos humanos e sociais do dano causado. Em vez de buscar apenas punição, a Justiça Restaurativa valoriza três pilares fundamentais: responsabilidadereparação e reintegração. Esses princípios estão interligados e constituem o núcleo das práticas restaurativas. O presente texto tem como objetivo analisar detalhadamente esses três elementos, discutindo seus fundamentos teóricos, aplicações práticas e implicações para vítimas, ofensores e comunidades.

 

1. A Responsabilidade no Contexto Restaurativo

1.1 Conceito de Responsabilidade Restaurativa

Diferente da concepção tradicional, que vincula responsabilidade à culpabilidade jurídica e à aplicação de uma sanção, a Justiça

Restaurativa propõe uma responsabilização ativa, voluntária e consciente por parte daquele que causou o dano. Isso implica reconhecer o impacto de suas ações, escutar as vítimas e assumir um compromisso com a reparação.

 

Howard Zehr (2002), um dos principais teóricos da área, afirma que "responsabilidade verdadeira não pode ser imposta, deve ser assumida". Para tanto, é necessário criar espaços seguros e acolhedores, onde o ofensor possa compreender o sofrimento gerado e, a partir daí, assumir uma postura de transformação pessoal e social.


1.2 Elementos da Responsabilização Restaurativa

A responsabilização, no modelo restaurativo, está associada a três dimensões principais:

       Reconhecimento do ato: O ofensor admite ter causado o dano e reconhece a gravidade do ocorrido.

       Empatia com a vítima: Desenvolve-se a capacidade de escutar e compreender o sofrimento do outro.

       Compromisso com a mudança: O responsável compromete-se com ações concretas para reparar o dano e não repetir o comportamento.

Esse tipo de responsabilização exige tempo, acompanhamento e sensibilidade cultural. Não se trata apenas de confessar a culpa, mas de entender os impactos e buscar restabelecer as relações afetadas.

 

1.3 Comparativo com a Responsabilidade no Modelo Punitivo

No modelo retributivo, a responsabilidade é juridicamente imposta e frequentemente desvinculada de qualquer reflexão ética. O processo criminal muitas vezes exclui o ofensor do debate moral, substituindo-o por procedimentos técnicos e decisões judiciais. Na Justiça Restaurativa, por outro lado, a responsabilização é dialógica e envolve um processo educativo, onde o ofensor é convidado a refletir, aprender e crescer a partir do conflito (BRAITHWAITE, 2002).

 

2. Reparação: O Coração da Justiça Restaurativa

2.1 Conceito e Tipos de Reparação

A reparação é o eixo central da Justiça Restaurativa. Ao contrário da pena retributiva, que se centra na punição abstrata, a reparação visa atender diretamente às necessidades das vítimas e restaurar os danos causados, de maneira concreta e significativa.

Segundo o Manual da ONU sobre Programas de Justiça Restaurativa (2006), a reparação pode assumir diferentes formas, tais como:

 

       Reparação material: compensação financeira, reposição de bens ou serviços comunitários.

       Reparação simbólica: pedido de desculpas, atos de reconhecimento público ou cerimônias de reconciliação.

       Reparação emocional: escuta empática, reconstrução de vínculos e resgate da dignidade.

Cada caso exige uma forma de reparação personalizada, que respeite as necessidades das vítimas, a capacidade do ofensor e a realidade cultural da comunidade envolvida.

 

2.2 A Centralidade da Vítima

A reparação somente é possível se a vítima for ouvida e colocada no centro do processo. No sistema penal tradicional, a vítima é frequentemente excluída e tratada como mera fonte de prova. Já no modelo restaurativo, ela é considerada parte ativa, com voz, sentimentos e necessidades específicas que precisam ser acolhidas (WALGRAVE, 2008).

 

Muitas vítimas afirmam que o simples fato de serem ouvidas com respeito e empatia já representa um passo significativo no processo de cura. Em alguns casos, a reparação simbólica tem mais impacto emocional do que a compensação financeira, pois promove o reconhecimento do sofrimento vivenciado.

 

2.3 Reparação e Transformação Social

Além de atender aos indivíduos diretamente afetados, a reparação tem um efeito transformador mais amplo. Quando realizada com autenticidade, ela contribui para fortalecer laços sociais, prevenir novas infrações e construir uma cultura de paz. A comunidade deixa de ser mero espectador do conflito e passa a atuar como agente restaurador, promovendo valores como solidariedade, corresponsabilidade e justiça relacional (PRANIS, 2005).

 

3. Reintegração: Restaurar o Pertencimento

3.1 O Sentido da Reintegração

A reintegração diz respeito ao retorno do infrator ao convívio social, de forma digna e responsável, e também à recuperação da vítima como sujeito pleno de direitos. Trata-se de um processo contínuo que busca reconstruir os laços rompidos e restaurar o sentimento de pertencimento, tanto para quem causou quanto para quem sofreu o dano.

 

Muitas vezes, o crime gera estigmatização, isolamento e exclusão. O sistema penal tradicional reforça esse ciclo ao rotular o infrator e deixá-lo à margem da sociedade. A vítima, por sua vez, pode se sentir abandonada, revitimizada e silenciada. A Justiça Restaurativa propõe caminhos para superar essa lógica de exclusão por meio de práticas de acolhimento, diálogo e reconexão.

 

3.2 Reintegração do Ofensor

Para que a reintegração do ofensor seja possível, é necessário que ele passe por um processo genuíno de responsabilização e reparação. Apenas quando há reconhecimento do dano e esforço para repará-lo é que o retorno à comunidade pode ocorrer com autenticidade e aceitação.

 

Programas restaurativos com egressos do sistema prisional, por exemplo, têm demonstrado eficácia na redução da

reincidência e no fortalecimento de projetos de vida. A criação de espaços de escuta, acompanhamento psicossocial e envolvimento comunitário são elementos essenciais desse processo (KARP; SULLIVAN, 2016).

 

3.3 Reintegração da Vítima

A reintegração da vítima é igualmente importante. Muitas vítimas relatam sentimentos de medo, desconfiança e insegurança após a infração. A experiência restaurativa, quando bem conduzida, pode ajudá-las a recuperar o senso de controle, autonomia e dignidade.

 

A reintegração da vítima envolve validar seu sofrimento, reconhecer sua história e proporcionar espaços seguros de expressão. Além disso, o apoio da comunidade e dos facilitadores é fundamental para que ela não se sinta isolada ou revitimizada.

 

4. Interconexão entre os Três Pilares

Responsabilidade, reparação e reintegração não são etapas separadas, mas elementos interdependentes e complementares. Um processo restaurativo bem-sucedido exige que esses três componentes estejam presentes e articulados.

 

A responsabilização sem reparação pode se tornar vazia. A reparação sem responsabilização pode ser superficial. A reintegração sem esses dois processos pode ser forçada ou ineficaz. Portanto, o grande desafio da Justiça Restaurativa está em construir experiências que envolvam verdadeiramente todas as partes e promovam transformação real.

 

Essa visão integrada está presente em diversas práticas restaurativas, como os círculos de justiça, as conferências familiares e as mediações vítimaofensor. Esses modelos criam oportunidades para que vítimas, ofensores e membros da comunidade se encontrem, compartilhem suas experiências e cocriem soluções justas e sustentáveis (BRAITHWAITE, 2002; ZEHR, 2008).

 

Conclusão

A Justiça Restaurativa oferece uma nova maneira de compreender e lidar com os conflitos e as infrações. Seus pilares – responsabilidadereparação e reintegração – refletem um compromisso com a dignidade humana, a escuta sensível e a reconstrução de vínculos.

 

Ao promover a responsabilização ativa, a reparação personalizada e a reintegração plena, a Justiça Restaurativa rompe com a lógica excludente do sistema penal e propõe uma justiça verdadeiramente relacional. Trata-se de um caminho que exige coragem, empatia e disposição para o diálogo, mas que oferece recompensas duradouras em termos de paz social e transformação pessoal.

 

Para avançar nessa direção, é necessário investir na formação de facilitadores, criar políticas públicas de fomento à Justiça Restaurativa e

fortalecer a cultura

a cultura da não violência em todos os espaços sociais. Somente assim será possível construir uma sociedade mais justa, inclusiva e restaurativa.

 

Referências Bibliográficas

BRAITHWAITE, John. Restorative Justice and Responsive Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2002.

KARP, David R.; SULLIVAN, Kate. Restorative Justice in the Classroom: A Practical Guide for Educators. Boulder: First Edition, 2016.

ONU – Organização das Nações Unidas. Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa. UNODC, Nova Iorque, 2006.

PRANIS, Kay. The Little Book of Circle Processes: A New/Old Approach to Peacemaking. Intercourse, PA: Good Books, 2005.

WALGRAVE, Luc. Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship. Willan Publishing, 2008.

ZEHR, Howard. The Little Book of Restorative Justice. Intercourse, PA: Good Books, 2002.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: Um Novo Foco sobre Justiça e seus Conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2008.


 

O Papel das Emoções, Empatia e Escuta Ativa na Justiça Restaurativa

 

Introdução

A Justiça Restaurativa propõe uma nova forma de lidar com os conflitos, crimes e violações sociais, deslocando o foco da punição formal para a reparação de danos, responsabilização consciente e restauração de vínculos. Mais do que uma simples alternativa ao sistema penal retributivo, ela oferece uma abordagem profundamente humana, que reconhece o papel das emoções, da empatia e da escuta ativa como elementos centrais para a construção de um processo verdadeiramente transformador. Este texto explora como esses três componentes – emoções, empatia e escuta ativa – são fundamentais para o sucesso das práticas restaurativas, promovendo compreensão mútua, cura emocional e reconexão social entre as partes envolvidas no conflito.

 

1. Emoções na Justiça Restaurativa: Reconhecimento e Validação

1.1 A natureza emocional do conflito

Todo conflito, seja ele interpessoal, comunitário ou criminal, envolve emoções. Quando uma pessoa sofre um dano, não experimenta apenas uma violação objetiva de um direito, mas um abalo emocional profundo, que pode incluir dor, raiva, medo, tristeza ou humilhação. Da mesma forma, o autor do dano também pode experimentar sentimentos de culpa, vergonha ou arrependimento. Essas emoções, quando ignoradas, reprimidas ou instrumentalizadas, tendem a se cristalizar em ressentimentos ou comportamentos defensivos que impedem a restauração das relações.

 

A Justiça Restaurativa reconhece que os conflitos têm uma dimensão emocional que precisa ser abordada

com cuidado e respeito. Segundo Zehr (2002), o processo restaurativo não se limita à resolução racional de problemas, mas envolve uma experiência emocional de escuta, reconhecimento e reconciliação. Ao criar um espaço seguro para a expressão das emoções, as práticas restaurativas permitem que as partes se sintam vistas, ouvidas e validadas em sua dor.

1.2 Validar, não julgar

Validar as emoções não significa concordar com elas, mas reconhecê-las como legítimas. Esse reconhecimento é fundamental para que a vítima sinta que sua dor foi ouvida, e para que o ofensor compreenda o impacto de seus atos. Ao contrário do processo judicial convencional, que geralmente reprime ou ignora as emoções, a Justiça Restaurativa as coloca no centro do processo.

 

Segundo Pranis (2005), “as emoções não são obstáculos à justiça – são o caminho para ela”. Quando as emoções são acolhidas com sensibilidade, elas se tornam um recurso para o diálogo, e não uma ameaça à sua racionalidade.

 

2. Empatia: Conectando Vítimas e Infratores

2.1 O conceito de empatia

Empatia é a capacidade de compreender e compartilhar os sentimentos do outro. Mais do que simpatia ou compaixão, a empatia implica colocar-se no lugar do outro de maneira ativa, escutando sem julgar e procurando ver o mundo a partir da perspectiva alheia. Na Justiça Restaurativa, a empatia é vista como uma ponte que conecta as experiências das vítimas e dos infratores, mesmo em situações marcadas por dor e conflito.

 

Segundo Marshall Rosenberg (2006), criador da Comunicação Não-Violenta (CNV), a empatia não é um processo de convencimento, mas de presença e conexão emocional. Em círculos restaurativos, por exemplo, os participantes são convidados a escutar com empatia, o que significa suspender julgamentos e oferecer atenção genuína às experiências compartilhadas.

 

2.2 O papel da empatia na responsabilização

A responsabilização restaurativa não é baseada na imposição de culpa, mas na compreensão do impacto dos próprios atos. Esse entendimento só é possível quando há empatia. Ao ouvir a dor da vítima, o ofensor pode desenvolver um senso de responsabilidade mais profundo e autêntico, que o motiva a reparar o dano não por medo da punição, mas por um compromisso ético e humano.

 

Braithwaite (2002) ressalta que o processo restaurativo é mais eficaz quando promove o que ele chama de “shaming reintegrativo”, ou seja, um reconhecimento do erro que não isola ou humilha o infrator, mas o convida a reencontrar seu lugar na comunidade por meio da

empatia e do reparo.

 

2.3 A empatia como ferramenta de cura

Para as vítimas, ser ouvida com empatia é um passo fundamental no processo de cura. Muitas vezes, o sistema penal convencional falha em proporcionar esse espaço de escuta. A Justiça Restaurativa oferece uma oportunidade para que as vítimas compartilhem suas histórias, sejam reconhecidas e comecem a reconstruir seu senso de dignidade e segurança.

 

Pesquisas demonstram que vítimas que participaram de processos restaurativos relataram níveis mais altos de satisfação e menor desejo de vingança (SHAPLAND et al., 2008). Isso se deve, em grande parte, à presença da empatia no processo, algo frequentemente ausente nos tribunais tradicionais.

 

3. Escuta Ativa: A Base do Diálogo Restaurativo

3.1 O que é escuta ativa?

A escuta ativa é uma técnica de comunicação que vai além de simplesmente “ouvir”. Trata-se de um processo consciente de atenção, acolhimento e resposta empática ao que está sendo dito. Envolve observar não apenas as palavras, mas também os sentimentos, emoções e significados implícitos. Na Justiça Restaurativa, a escuta ativa é fundamental para que o diálogo seja autêntico e transformador.

 

 

Segundo Rogers (1961), a escuta ativa é um dos pilares da relação terapêutica, e pode ser aplicada em qualquer contexto de escuta genuína. Envolve técnicas como:

       Parafrasear o que o outro disse para demonstrar compreensão.

       Fazer perguntas abertas que aprofundem o relato.

       Manter contato visual, postura aberta e atenção plena.

       Evitar interrupções, julgamentos ou conselhos prematuros.

 

3.2 Escuta ativa como instrumento de equidade

Em práticas restaurativas como os círculos de diálogo, todos os participantes têm a oportunidade de falar e ser escutados de maneira equitativa. A escuta ativa rompe com hierarquias tradicionais e oferece um espaço horizontal, onde cada voz tem valor. Isso é especialmente importante em contextos de desigualdade, onde certas vozes tendem a ser marginalizadas ou silenciadas.

 

A escuta ativa também favorece o reconhecimento mútuo. Ao se sentir ouvido, o participante tende a se abrir mais, criando um ciclo positivo de confiança e cooperação. Esse tipo de escuta não é apenas uma técnica, mas uma atitude ética de presença e respeito.

 

3.3 Facilitação e escuta ativa

O facilitador em um processo restaurativo tem o papel crucial de garantir a qualidade da escuta. Ele cria o ambiente emocional e simbólico adequado, ajuda a manter o foco, intervém quando necessário e assegura

que todos tenham a oportunidade de se expressar.

 

Formações em Justiça Restaurativa incluem treinamentos intensivos em escuta ativa, justamente porque essa habilidade é indispensável para a eficácia do processo. Sem escuta, não há diálogo; sem diálogo, não há restauração.

 

4. A Dimensão Relacional da Justiça

A Justiça Restaurativa propõe uma visão relacional da justiça, onde os vínculos e as interações entre as pessoas são tão importantes quanto os atos em si. Emoções, empatia e escuta ativa não são aspectos acessórios, mas constitutivos dessa abordagem. Eles não apenas tornam possível o encontro entre as partes, mas também promovem transformações subjetivas e sociais profundas.

 

Como destaca Walgrave (2008), a Justiça Restaurativa não se limita a “resolver casos”, mas visa transformar pessoas e relações. Esse processo de transformação só é possível quando as emoções são reconhecidas, a empatia é cultivada e a escuta ativa é praticada de forma autêntica.

 

A ênfase na dimensão emocional e relacional também aproxima a Justiça Restaurativa de abordagens terapêuticas e educativas. Por isso, ela tem sido amplamente utilizada em escolas, comunidades, instituições de saúde e programas de justiça juvenil. Em todos esses contextos, o tripé emoções– empatia–escuta revela-se como um instrumento poderoso de reconstrução da confiança e da convivência.

 

Conclusão

A Justiça Restaurativa se diferencia radicalmente da Justiça tradicional por valorizar não apenas os atos cometidos, mas as pessoas envolvidas, suas histórias, suas emoções e sua dignidade. Nesse sentido, o papel das emoções, da empatia e da escuta ativa é central e insubstituível.

 

Ao reconhecer a dor da vítima, promover a responsabilização empática do ofensor e restabelecer os laços por meio do diálogo, a Justiça Restaurativa oferece um caminho de cura, reconciliação e prevenção. Mais do que uma técnica, trata-se de uma cultura baseada no respeito, na escuta e na compaixão.

 

 

Para consolidar essa abordagem, é necessário que os profissionais da Justiça, da educação e das políticas públicas estejam capacitados para lidar com o mundo emocional dos conflitos. Isso exige formação, sensibilidade e uma mudança de paradigma que valorize o humano no centro da Justiça.

 

Referências Bibliográficas

BRAITHWAITE, John. Restorative Justice and Responsive Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2002.

PRANIS, Kay. The Little Book of Circle Processes: A New/Old Approach to Peacemaking. Intercourse, PA: Good Books, 2005.

ROGERS, Carl. 

On Becoming a Person: A Therapist’s View of

Psychotherapy. Boston: Houghton Mifflin, 1961.

ROSENBERG, Marshall. Comunicação Não-Violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.

SHAPLAND, Joanna et al. Does Restorative Justice Affect Reconviction? The Fourth Report from the Evaluation of Three Schemes. Ministry of Justice Research Series 10/08, 2008.

WALGRAVE, Luc. Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship. Willan Publishing, 2008.

ZEHR, Howard. The Little Book of Restorative Justice. Intercourse, PA: Good Books, 2002.


 

Relações Comunitárias e Envolvimento dos Afetados na Justiça Restaurativa

 

Introdução

A Justiça Restaurativa propõe uma transformação profunda na forma como os conflitos e crimes são compreendidos e tratados. Em vez de focar apenas na punição do infrator, como faz o modelo retributivo, a Justiça Restaurativa busca restaurar os laços sociais rompidos, reparar os danos causados e reintegrar todos os envolvidos na comunidade. Nesse processo, as relações comunitárias e o envolvimento dos afetados — incluindo vítimas, ofensores, familiares, vizinhança e instituições locais — são elementos fundamentais.

 

Diferente da Justiça tradicional, que tende a excluir a comunidade do processo e delegar ao Estado a resolução dos conflitos, a Justiça Restaurativa promove uma abordagem participativa, onde as partes afetadas desempenham papel ativo na busca por soluções. Este texto discute o papel das relações comunitárias e do envolvimento direto dos afetados nas práticas restaurativas, com base em fundamentos teóricos, experiências práticas e referências bibliográficas relevantes.

 

1. Justiça Restaurativa como processo comunitário

1.1 O crime como ruptura de vínculos

Na visão da Justiça Restaurativa, o crime não é apenas uma infração legal ou uma afronta ao Estado, mas uma violação de pessoas e de suas relações. Ele causa danos não só à vítima direta, mas também aos laços familiares, à confiança social e ao tecido comunitário como um todo. Portanto, o processo restaurativo deve ir além da sanção legal e buscar restaurar as conexões afetadas.

 

Howard Zehr (2002), um dos principais expoentes da Justiça Restaurativa, afirma que a pergunta central dessa abordagem não é “que lei foi violada e qual a pena apropriada?”, mas sim “quem foi afetado, quais são suas necessidades e quem é responsável por atendê-las?”. A partir dessa lógica, torna-se evidente que o envolvimento das partes afetadas é indispensável à

eficácia e à legitimidade do processo.

 

1.2 Comunidade como coautora da Justiça

A Justiça Restaurativa reconhece a comunidade não como um observador passivo, mas como coautora da resposta ao crime. Isso se manifesta por meio da participação de representantes comunitários em círculos restaurativos, conferências familiares, fóruns de diálogo e outras práticas.

 

Essa concepção encontra respaldo em Braithwaite (2002), que destaca a importância do que chama de “shaming reintegrativo” — uma forma de responsabilização que não exclui o infrator, mas o acolhe de volta à comunidade após o reconhecimento e reparação do dano. Nesse modelo, a comunidade desempenha papel tanto de apoio à vítima quanto de acolhimento ao infrator, promovendo reintegração e coesão social.

 

2. O envolvimento dos afetados: vítimas, ofensores e comunidade

2.1 A centralidade das vítimas

Na Justiça Restaurativa, a vítima deixa de ser mera testemunha para se tornar sujeito ativo do processo. Isso significa que suas necessidades, sentimentos e expectativas são levados em consideração desde o início. Muitas vítimas relatam frustração com o sistema penal convencional por não serem ouvidas nem consideradas em suas reais demandas (ZEHR, 2008).

 

Nos processos restaurativos, as vítimas podem expressar diretamente seus sentimentos, fazer perguntas ao ofensor, relatar os impactos do ocorrido em sua vida e propor formas de reparação. Esse protagonismo favorece a reconstrução da dignidade e da segurança.


2.2 A responsabilização do ofensor

O infrator, por sua vez, é convidado a refletir sobre seus atos, reconhecer os danos causados e assumir a responsabilidade por repará-los. Essa responsabilização não é imposta por uma autoridade externa, mas construída em diálogo com as partes envolvidas.

 

Ao contrário da lógica punitiva, que isola o infrator da sociedade, a Justiça Restaurativa o envolve em um processo de reconexão com a vítima, com a comunidade e consigo mesmo. Isso contribui para reduzir a reincidência e

favorecer processos de mudança pessoal (SHAPLAND et al., 2008).

 

2.3 Participação da comunidade ampliada

Além da vítima e do ofensor, outros membros da comunidade também podem participar do processo restaurativo. Isso inclui familiares, vizinhos, professores, líderes religiosos, assistentes sociais e outros que tenham sido afetados ou que possam oferecer apoio às partes.

 

A presença dessas pessoas enriquece o processo, pois traz diferentes perspectivas, fortalece redes de apoio e demonstra que o conflito não se

resume aos indivíduos diretamente envolvidos, mas tem implicações coletivas. A comunidade passa a ser responsável pela reparação e pela prevenção de novos conflitos.

 

3. Práticas restaurativas comunitárias

3.1 Círculos de construção de paz

Uma das práticas mais utilizadas para promover o envolvimento comunitário são os círculos restaurativos, também chamados de círculos de construção de paz. Inspirados em tradições indígenas, esses encontros seguem uma metodologia baseada na escuta ativa, na fala com o “objeto da palavra” e na igualdade entre os participantes.

 

Segundo Pranis (2005), os círculos promovem um espaço seguro onde todas as vozes são ouvidas e respeitadas, e onde as decisões são tomadas de forma consensual. Eles podem ser utilizados tanto para responder a um conflito específico quanto para fortalecer vínculos comunitários e prevenir a violência.

 

3.2 Conferências familiares e comunitárias

Outra prática comum são as conferências restaurativas, nas quais a vítima, o ofensor e seus respectivos grupos de apoio (família, amigos, colegas) se reúnem para discutir o ocorrido e construir um plano de reparação. Essa metodologia foi formalmente adotada na Nova Zelândia em 1989 e tornouse um modelo amplamente replicado (MAXWELL; MORRIS, 2006).

 

As conferências favorecem o envolvimento direto dos afetados, promovendo um processo de escuta mútua, reconhecimento de responsabilidades e construção conjunta de soluções.

 

3.3 Mediações comunitárias

As mediações comunitárias são outra expressão da Justiça Restaurativa, com ênfase na resolução de conflitos cotidianos — como desentendimentos entre vizinhos, familiares ou colegas de trabalho — por meio do diálogo mediado. Em muitas cidades brasileiras, centros de justiça comunitária vêm utilizando essas práticas como forma de desjudicializar conflitos e fortalecer o tecido social.

 

4. Desafios e potencialidades do envolvimento comunitário

4.1 Desafios culturais e institucionais

Apesar de seus inúmeros benefícios, o envolvimento comunitário enfrenta desafios significativos. Um deles é a cultura de delegação da Justiça ao Estado, que ainda predomina em muitas sociedades. As pessoas estão acostumadas a terceirizar os conflitos às instituições formais, como o

Judiciário ou a polícia, em vez de buscar soluções coletivas e participativas.

 

Outro desafio é a falta de preparo e de recursos para a formação de facilitadores e para a criação de espaços restaurativos adequados. Sem apoio institucional, muitas iniciativas acabam sendo pontuais

e facilitadores e para a criação de espaços restaurativos adequados. Sem apoio institucional, muitas iniciativas acabam sendo pontuais e não sustentáveis a longo prazo.

 

4.2 Potencialidades transformadoras

Por outro lado, as experiências de Justiça Restaurativa demonstram que o envolvimento dos afetados pode ter efeitos profundamente transformadores. Quando a comunidade participa da resolução dos conflitos, ocorrem ganhos em termos de:

       Fortalecimento da coesão social.

       Prevenção de novos conflitos.

       Aumento da confiança nas instituições.

       Empoderamento das vítimas.

       Reintegração dos ofensores.

Esses efeitos são cumulativos e duradouros, especialmente quando inseridos em políticas públicas consistentes e intersetoriais.

 

Conclusão

A Justiça Restaurativa oferece uma abordagem centrada nas pessoas, nas relações e na comunidade. Ao colocar vítimas, ofensores e demais afetados no centro do processo, ela promove uma Justiça mais humana, participativa e eficaz. As relações comunitárias e o envolvimento direto dos afetados não são apenas estratégias operacionais, mas princípios éticos que orientam toda a lógica restaurativa.

 

Essa forma de Justiça reconhece que o crime é uma ruptura de vínculos, e que a restauração desses vínculos só é possível quando todos os envolvidos têm a oportunidade de serem ouvidos, responsabilizados e reintegrados. Para que isso ocorra, é necessário investir na formação de facilitadores, no fortalecimento das redes comunitárias e na construção de uma cultura de diálogo e corresponsabilidade.

O desafio está em superar os modelos hierárquicos e punitivos de resolução de conflitos e criar espaços onde a Justiça seja, de fato, uma construção coletiva. A experiência internacional e nacional mostra que isso é possível — e urgente.

 

Referências Bibliográficas

BRAITHWAITE, John. Restorative Justice and Responsive Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2002.

MAXWELL, Gabrielle; MORRIS, Allison. Youth Justice in New Zealand: Restorative Justice in Practice? Journal of Social Issues, v. 62, n. 2, p. 239– 258, 2006.

PRANIS, Kay. The Little Book of Circle Processes: A New/Old Approach to Peacemaking. Intercourse, PA: Good Books, 2005.

SHAPLAND, Joanna et al. Does Restorative Justice Affect Reconviction? The Fourth Report from the Evaluation of Three Schemes. Ministry of Justice Research Series 10/08, 2008.

ZEHR, Howard. The Little Book of Restorative Justice. Intercourse, PA: Good Books, 2002.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes:

Um Novo Foco sobre Justiça e seus Conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2008.


 

Iniciativas Internacionais de Justiça Restaurativa: Experiências da Nova Zelândia e do Canadá

 

Introdução

Nas últimas décadas, a Justiça Restaurativa emergiu como uma resposta inovadora aos limites do sistema penal tradicional, encontrando eco em diversas nações interessadas em desenvolver formas mais humanas, participativas e eficazes de resolução de conflitos. Entre os países que mais se destacam na institucionalização e difusão de práticas restaurativas estão a Nova Zelândia e o Canadá. Ambos adotaram modelos próprios, ancorados tanto em tradições culturais quanto em marcos legais modernos, que influenciaram diretamente outras nações e contribuíram para a consolidação de um campo internacional da Justiça Restaurativa. Este texto analisa as iniciativas restaurativas nesses dois países, destacando os contextos históricos, fundamentos jurídicos, práticas implementadas, resultados alcançados e lições aprendidas.

 

1. Justiça Restaurativa na Nova Zelândia

1.1 Contexto cultural e legal

A Nova Zelândia é frequentemente citada como um dos exemplos mais bemsucedidos de institucionalização da Justiça Restaurativa, especialmente no que se refere ao sistema de justiça juvenil. O diferencial neozelandês reside na incorporação de práticas tradicionais do povo indígena Māori — como o “whānau conferencing” — ao sistema legal estatal. Essas práticas comunitárias de resolução de conflitos sempre valorizaram a restauração de vínculos, o diálogo e a reparação dos danos como pilares da convivência social (MAXWELL; MORRIS, 2006).

 

Em 1989, foi promulgada a Children, Young Persons, and Their Families Act, legislação que reformulou o sistema de justiça juvenil do país, introduzindo como peça central a Family Group Conference (FGC) — ou Conferência de Grupo Familiar. Este modelo inspirou diretamente reformas em outros países e se tornou referência internacional em Justiça Restaurativa aplicada à infância e juventude.

 

1.2 Funcionamento das Conferências Familiares

As FGCs são reuniões formalizadas que envolvem o jovem infrator, seus familiares, a vítima e seus apoiadores, além de representantes legais e facilitadores treinados. O processo ocorre em quatro etapas principais:

1.     Apresentação do caso e escuta da vítima.

2.     Reflexão coletiva sobre o impacto da infração.

3.     Deliberação entre o grupo familiar do jovem sobre a melhor forma de reparação.

4.     Elaboração de um plano restaurativo, com medidas

específicas, prazos e responsabilidades.

Esse modelo valoriza a autonomia das famílias, reconhece a centralidade da vítima e busca reintegrar o jovem à comunidade, evitando a institucionalização precoce (MAXWELL; MORRIS, 2006).

 

1.3 Resultados e reconhecimento internacional

Estudos longitudinais indicam que a aplicação das FGCs reduziu significativamente os índices de reincidência juvenil, aumentou a satisfação das vítimas e fortaleceu os vínculos familiares. As práticas restaurativas passaram a ser utilizadas não apenas na justiça juvenil, mas também em escolas, comunidades e instituições de saúde mental (ZEHR, 2002).

 

Organizações internacionais, como a ONU e o Fórum Europeu para Justiça Restaurativa, apontam a Nova Zelândia como exemplo de boas práticas em políticas públicas baseadas em Justiça Restaurativa. O sucesso das FGCs evidencia a importância de valorizar saberes locais e integrar atores institucionais e comunitários na resposta ao crime.

 

2. Justiça Restaurativa no Canadá

2.1 Origens e influência menonita

O Canadá é considerado um dos berços da Justiça Restaurativa contemporânea. O caso inicial e mais conhecido ocorreu em 1974, em Kitchener, Ontário, quando dois adolescentes foram condenados por vandalismo. Em vez de seguir o trâmite judicial tradicional, um oficial de condicional e um membro da Igreja Menonita propuseram que os jovens se encontrassem com as vítimas para ouvir seus relatos e acordar formas de reparação. Esse processo foi bem-sucedido e deu origem ao VictimOffender Reconciliation Program (VORP), reconhecido como o primeiro programa restaurativo formalizado da era moderna (ZEHR, 2008).

 

O movimento menonita, com forte presença no Canadá, foi decisivo na disseminação do modelo restaurativo, por seu enfoque na reconciliação, não violência e resolução pacífica de conflitos. A partir desse núcleo religioso e comunitário, programas semelhantes se espalharam por diversas províncias canadenses, incluindo Colúmbia Britânica, Manitoba, Alberta e Quebec.

 

2.2 Marcos legais e expansão

A partir da década de 1990, o governo canadense começou a incorporar oficialmente elementos da Justiça Restaurativa em suas políticas públicas. Em 1996, a nova legislação criminal (Bill C-41) incluiu o princípio da reparação como objetivo da sentença penal, reconhecendo explicitamente a importância das vítimas no processo.

 

Hoje, o Canadá conta com uma ampla rede de programas restaurativos, que atuam em diversas fases do processo judicial:

       Pré-judiciais, como

alternativa à acusação formal.

       Durante o julgamento, como condição para suspensão do processo.

       Pós-condenatórios, em articulação com serviços de apoio e reintegração social.

Há também forte presença de práticas restaurativas em escolas, universidades, comunidades indígenas e até no sistema prisional.

2.3 Justiça Restaurativa e povos indígenas

O Canadá tem promovido programas restaurativos específicos para comunidades indígenas, como forma de respeitar sua autonomia cultural e reparar injustiças históricas provocadas pelo colonialismo e pela criminalização de práticas tradicionais. Um exemplo emblemático é o programa de círculos restaurativos em Hollow Water, uma comunidade da etnia Ojibwa, em Manitoba. Lá, casos graves, como abuso sexual, são tratados com a participação direta de vítimas, ofensores, curadores espirituais, conselheiros e familiares, em um processo de cura coletiva e reintegração (ROSS, 1996).

 

Essa abordagem exige tempo, diálogo e apoio institucional, mas tem mostrado resultados promissores, tanto em termos de prevenção da reincidência quanto de fortalecimento da cultura indígena e da autonomia local.

 

3. Comparações e aprendizados entre os modelos

3.1 Ponto em comum: abordagem relacional

Apesar das diferenças contextuais e culturais, as experiências da Nova Zelândia e do Canadá compartilham uma visão comum da Justiça Restaurativa como processo relacional, centrado na escuta, no diálogo e na corresponsabilidade. Em ambos os países, há valorização da participação comunitária, da centralidade das vítimas e da responsabilização ética dos ofensores.

 

3.2 Diferenças estruturais

Enquanto a Nova Zelândia priorizou a institucionalização das conferências familiares como política nacional, especialmente na justiça juvenil, o Canadá desenvolveu uma rede diversificada de programas, com forte presença de organizações da sociedade civil, em diferentes estágios do processo penal. Além disso, o Canadá tem investido mais intensamente em programas voltados às comunidades indígenas, com base em uma abordagem intercultural.

 

3.3 Lições para o cenário internacional

As experiências desses países oferecem lições valiosas para outras nações que desejam implementar ou fortalecer políticas de Justiça Restaurativa:

       Participação comunitária é essencial: a eficácia dos programas depende do envolvimento real das vítimas, ofensores, famílias e comunidade.

       Formação e apoio institucional: facilitadores precisam de preparo técnico e suporte para atuar com

qualidade e segurança.

       Flexibilidade e adaptação cultural: os modelos restaurativos devem respeitar as especificidades culturais e históricas de cada contexto.

 

Conclusão

A Justiça Restaurativa, como paradigma relacional e transformador, tem se consolidado internacionalmente por meio de experiências exitosas como as da Nova Zelândia e do Canadá. Ambos os países demonstraram que é possível construir sistemas de justiça mais inclusivos, sensíveis e eficazes, baseados no diálogo, na reparação e na participação comunitária.

 

A Nova Zelândia destacou-se por integrar saberes ancestrais ao sistema jurídico formal, promovendo reformas estruturais no tratamento da justiça juvenil. O Canadá, por sua vez, contribuiu com a criação e disseminação de programas baseados em princípios éticos de reconciliação, responsabilização e respeito à diversidade cultural.

 

Essas experiências mostram que a Justiça Restaurativa não é uma utopia, mas uma realidade concreta e promissora. Seu êxito depende, no entanto, de vontade política, investimento público, articulação interinstitucional e, sobretudo, da disposição das sociedades para repensar as formas tradicionais de administrar a justiça e resolver os conflitos humanos.


Referências Bibliográficas

BRAITHWAITE, John. Restorative Justice and Responsive Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2002.

MAXWELL, Gabrielle; MORRIS, Allison. Youth Justice in New Zealand: Restorative Justice in Practice? Journal of Social Issues, v. 62, n. 2, p. 239– 258, 2006.

ROSS, Rupert. Returning to the Teachings: Exploring Aboriginal Justice. Toronto: Penguin Books, 1996.

SHAPLAND, Joanna et al. Does Restorative Justice Affect Reconviction? The Fourth Report from the Evaluation of Three Schemes. Ministry of Justice Research Series 10/08, 2008.

ZEHR, Howard. The Little Book of Restorative Justice. Intercourse, PA: Good Books, 2002.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: Um Novo Foco sobre Justiça e seus Conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2008.


 

Implantação da Justiça Restaurativa no Brasil: CNJ, Escolas e Comunidades

 

Introdução

A Justiça Restaurativa é uma abordagem alternativa de resolução de conflitos que visa promover a responsabilização ativa, a reparação dos danos causados e a restauração das relações afetadas. No Brasil, esse paradigma tem ganhado destaque desde o início dos anos 2000, a partir de iniciativas pioneiras em diversas regiões do país. Seu desenvolvimento tem contado com o apoio institucional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o

engajamento de escolas públicas e a atuação de projetos comunitários, que juntos têm construído um novo caminho para a gestão de conflitos e o fortalecimento do tecido social.

 

Este texto apresenta um panorama da implantação da Justiça Restaurativa no Brasil, com ênfase nos marcos institucionais do CNJ, nas práticas educativas adotadas em escolas e nas ações desenvolvidas em comunidades vulneráveis. O objetivo é compreender os avanços, os desafios e os impactos dessa abordagem no contexto brasileiro.

 

1. O Marco Institucional: A Atuação do CNJ

1.1 A entrada da Justiça Restaurativa na agenda pública

A institucionalização da Justiça Restaurativa no Brasil teve início em meados dos anos 2000, com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Ministério da Justiça. Em 2005, foram lançados os primeiros projetos-piloto no Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal, voltados à aplicação da Justiça Restaurativa em casos envolvendo adolescentes em conflito com a lei.

 

A partir dessas experiências iniciais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a articular uma política nacional de Justiça Restaurativa, reconhecendo seu potencial transformador para o sistema judiciário. Em

2016, foi publicada a Resolução CNJ nº 225, um marco normativo que estabelece as diretrizes para a implementação e difusão da Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário (CNJ, 2016).

 

1.2 A Resolução CNJ nº 225/2016

Essa resolução define a Justiça Restaurativa como “um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visam à conscientização acerca dos fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violências” (CNJ, 2016).

Entre seus principais objetivos, destacam-se:

       Fomentar a formação de facilitadores e núcleos de práticas restaurativas.

       Estimular a articulação interinstitucional com órgãos públicos e sociedade civil.

       Incorporar a Justiça Restaurativa nos tribunais de todo o país.

       Promover ações de prevenção da violência e cultura de paz.

A partir da Resolução 225, diversos tribunais criaram centros ou núcleos de Justiça Restaurativa, capacitaram profissionais e passaram a encaminhar casos de forma voluntária a processos restaurativos.

 

1.3 A Política Nacional de Justiça Restaurativa

Em 2021, o CNJ lançou a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário (Portaria CNJ nº 299/2020), que ampliou e consolidou as ações já em curso. A política orienta os

que ampliou e consolidou as ações já em curso. A política orienta os tribunais a desenvolverem programas permanentes, com estrutura própria, orçamento definido e integração com políticas sociais.

 

Esse movimento representa um avanço na consolidação da Justiça Restaurativa como política pública, e não apenas como prática pontual. Além disso, reforça o compromisso do Estado brasileiro com formas mais humanas, participativas e inclusivas de fazer justiça.

 

 

2. A Justiça Restaurativa nas Escolas

2.1 O ambiente escolar como espaço de transformação

O ambiente escolar é um dos espaços mais promissores para a aplicação da Justiça Restaurativa. Conflitos entre estudantes, professores e famílias são frequentes e, quando não bem geridos, podem levar à exclusão, evasão escolar e violência. A Justiça Restaurativa oferece uma alternativa educativa, que promove o diálogo, a escuta ativa e a responsabilização sem punição autoritária.

 

No Brasil, diversas experiências vêm sendo desenvolvidas desde os anos 2000. Um exemplo pioneiro é o Projeto Justiça Restaurativa nas Escolas, iniciado em São Caetano do Sul (SP), com apoio do Tribunal de Justiça e da Secretaria Municipal de Educação. O projeto envolveu formação de professores, círculos de diálogo com estudantes e resolução de conflitos por meio de práticas restaurativas (ARAUJO; SANTOS, 2015).

 

2.2 Práticas restaurativas aplicadas à educação

As principais práticas restaurativas utilizadas nas escolas incluem:

       Círculos de construção de paz: encontros periódicos com turmas escolares para fortalecimento dos vínculos e prevenção de conflitos.

       Mediação de conflitos: processos conduzidos por facilitadores capacitados (às vezes, alunos mediadores), com o objetivo de restaurar relações danificadas.

       Círculos de responsabilização: reuniões que envolvem os estudantes infratores, seus colegas e adultos de confiança para refletir sobre o impacto de suas ações.

Essas práticas promovem o desenvolvimento de competências socioemocionais, como empatia, respeito mútuo, autorregulação e comunicação não violenta. Além disso, criam uma cultura de pertencimento e corresponsabilidade entre os membros da comunidade escolar (PRANIS, 2005).

 

2.3 Resultados e impactos observados

Diversos estudos e relatórios apontam impactos positivos da Justiça Restaurativa nas escolas brasileiras:

       Redução de casos de violência e bullying.

       Diminuição de suspensões e expulsões.

       Melhora na convivência e no clima escolar.

       Aumento

da participação estudantil e do engajamento pedagógico (BRANDÃO; PEREIRA, 2017).

Esses resultados demonstram que a Justiça Restaurativa não apenas resolve conflitos, mas transforma a cultura institucional da escola, tornando-a mais inclusiva, democrática e promotora de direitos.

 

3. Justiça Restaurativa em Comunidades

3.1 Aplicações comunitárias da Justiça Restaurativa

Fora do sistema de justiça e das escolas, a Justiça Restaurativa também tem sido aplicada em comunidades vulneráveis, com foco na promoção da paz, da convivência e da justiça social. A atuação comunitária da Justiça Restaurativa é especialmente importante em contextos de violência urbana, exclusão social e conflitos intergeracionais.

Em muitos bairros periféricos de grandes cidades brasileiras, organizações da sociedade civil, igrejas e coletivos populares têm implantado círculos restaurativos, fóruns comunitários e rodas de diálogo, buscando mediar conflitos de vizinhança, familiares ou ligados à convivência com o tráfico e as forças de segurança.

 

3.2 O caso do Projeto “Territórios da Paz”

Um exemplo relevante foi o projeto “Territórios da Paz”, realizado em Belém (PA), que articulou práticas restaurativas com políticas públicas de segurança, saúde e educação. O projeto promoveu a formação de facilitadores comunitários, círculos restaurativos em escolas e mediação de conflitos familiares, com significativa redução de violências e aumento da confiança nas instituições públicas (MARTINS, 2019).

 

3.3 Justiça Restaurativa e fortalecimento comunitário A Justiça Restaurativa nas comunidades promove:

       Reconhecimento da dignidade de cada morador.

       Criação de redes de apoio e solidariedade.

       Fortalecimento do senso de pertencimento e identidade comunitária.

       Empoderamento local para a resolução de conflitos.

Ao valorizar o protagonismo comunitário, a Justiça Restaurativa se mostra uma ferramenta potente de transformação social, em especial em territórios marcados por vulnerabilidades e ausência do Estado.

 

Conclusão

A implantação da Justiça Restaurativa no Brasil tem se dado de forma progressiva, envolvendo diferentes atores e contextos sociais. A atuação do CNJ foi decisiva para institucionalizar a abordagem no sistema de justiça e orientar os tribunais a adotarem políticas restaurativas. Nas escolas, a Justiça Restaurativa revelou-se uma poderosa ferramenta pedagógica e relacional, capaz de melhorar a convivência, prevenir violências e promover cidadania. Nas comunidades, atua como

instrumento de resistência, reconciliação e

fortalecimento dos vínculos sociais.

 

Embora os desafios sejam muitos — como a escassez de recursos, a necessidade de formação contínua e as resistências culturais ao paradigma restaurativo —, as experiências brasileiras demonstram que a Justiça Restaurativa é não apenas possível, mas necessária para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e humana.

 

Referências Bibliográficas

ARAUJO, Janice Lins de; SANTOS, Fabíola P. dos. Justiça Restaurativa nas Escolas: uma proposta para a cultura de paz. São Paulo: Cortez, 2015.

BRANDÃO, Claudia A.; PEREIRA, Márcia S. Educação para a Paz: experiências restaurativas nas escolas públicas do Brasil. Revista Brasileira de Educação, v. 22, n. 69, p. 671–690, 2017.

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016. Estabelece diretrizes para a Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 5 maio 2025.

MARTINS, Luana A. Justiça Restaurativa em territórios periféricos: práticas, saberes e desafios. Belém: UFPA, 2019.

PRANIS, Kay. The Little Book of Circle Processes: A New/Old Approach to Peacemaking. Intercourse, PA: Good Books, 2005.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre Justiça e seus conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2008.


 

Marcos Legais e Institucionais da Justiça Restaurativa

 

Introdução

A Justiça Restaurativa consolidou-se, nas últimas décadas, como um paradigma inovador e complementar aos sistemas tradicionais de justiça. Sua aplicação no Brasil e no mundo foi gradativamente respaldada por normativas legais, resoluções judiciais e instrumentos internacionais de direitos humanos. Os marcos legais e institucionais conferem legitimidade, estabilidade e coerência à implementação da Justiça Restaurativa, permitindo sua integração às políticas públicas e ao cotidiano do sistema judiciário, educacional e comunitário.

 

Este texto tem por objetivo analisar os principais marcos legais e institucionais que sustentam a Justiça Restaurativa, tanto no plano internacional quanto no contexto brasileiro, evidenciando suas diretrizes normativas, seus princípios jurídicos e suas articulações com os direitos fundamentais.

 

1. Marcos Internacionais da Justiça Restaurativa

1.1 Recomendações da ONU

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi uma das primeiras instituições internacionais a reconhecer oficialmente a Justiça Restaurativa como ferramenta legítima de resolução de conflitos penais. Em 2002, o

Conselho Econômico e Social das Nações Unidas aprovou a Resolução 2002/12, que contém os Princípios Básicos sobre o Uso de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal.

Esse documento recomenda aos Estados membros:

       O uso de práticas restaurativas em todas as etapas do processo penal.

       A voluntariedade da participação de vítimas e ofensores.

       A existência de facilitadores qualificados.

       A atenção à segurança, à dignidade e aos direitos humanos dos envolvidos.

Posteriormente, a ONU publicou o Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa (UNODC, 2006), detalhando diretrizes técnicas e boas práticas para a implementação de tais programas em contextos diversos, com destaque para populações vulneráveis e justiça juvenil.

 

1.2 Regras de Bangkok e outros instrumentos

Além da Resolução 2002/12, a Justiça Restaurativa é referenciada em outros instrumentos internacionais, como:

       Regras de Bangkok (2010): destacam o uso da Justiça Restaurativa como alternativa ao encarceramento de mulheres.

       Regra 60 das Regras de Mandela (2015): recomenda práticas restaurativas na reintegração de pessoas privadas de liberdade.

       Convenção dos Direitos da Criança (1989): embora anterior à popularização do termo, defende abordagens socioeducativas e participativas, compatíveis com os princípios restaurativos.

Esses documentos ajudam a moldar as políticas públicas nacionais em consonância com padrões internacionais de direitos humanos.

 

2. Marcos Legais e Institucionais no Brasil

2.1 Primeiras experiências e o papel do CNJ

A trajetória normativa da Justiça Restaurativa no Brasil começou a ganhar força a partir de 2005, com projetos-piloto apoiados pelo Ministério da Justiça, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e por tribunais de justiça estaduais.

A grande virada institucional ocorreu com a atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável pelo planejamento e controle da atividade administrativa e financeira do Judiciário brasileiro. Em 2016, foi publicada a Resolução CNJ nº 225, que representa o principal marco normativo da Justiça Restaurativa no país.

 

2.2 Resolução CNJ nº 225/2016

A Resolução nº 225/2016 estabelece as diretrizes para a implantação e disseminação da Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Entre seus principais dispositivos, destacam-se:

       Definição da Justiça Restaurativa como “conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias”.

       Reconhecimento de sua natureza interdisciplinar e relacional.

       Fomento à criação de Núcleos de Justiça Restaurativa nos tribunais.

       Estímulo à formação de facilitadores e equipes técnicas capacitadas.

       Valorização da escuta das vítimas, da responsabilização dos ofensores e da participação comunitária.

A Resolução enfatiza que a Justiça Restaurativa deve articular-se com políticas públicas, especialmente nas áreas da infância e juventude, educação, assistência social e segurança.

 

2.3 Política Nacional de Justiça Restaurativa (Portaria CNJ nº 299/2020)

Em continuidade à Resolução 225, o CNJ publicou, em 2020, a Portaria nº 299, que instituiu a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Essa política tem como princípios orientadores:

       Cultura da paz e da não violência.

       Centralidade das relações humanas.

       Participação ativa dos afetados pelos conflitos.

       Promoção da equidade, justiça social e inclusão.

A Portaria prevê o fortalecimento das estruturas administrativas, técnicas e pedagógicas dos tribunais para implementação de programas restaurativos e estimula a produção de dados e indicadores para avaliação dos resultados.

 

 

3. Marcos em outras legislações brasileiras

3.1 ECA e o SINASE

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990, já apresentava princípios compatíveis com a Justiça Restaurativa, mesmo antes de sua sistematização como política pública. O ECA estabelece:

       responsabilização pedagógica e não punitiva do adolescente.

       prioridade da reintegração familiar e comunitária.

       escuta e participação dos sujeitos envolvidos.

Esses princípios foram reafirmados pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), instituído pela Lei nº 12.594/2012, que incentiva medidas socioeducativas pautadas na reparação do dano, no diálogo e no protagonismo juvenil.

O artigo 35 do SINASE prevê expressamente a possibilidade de “mediação, círculos restaurativos e outras formas de composição entre autor e vítima”, o que confere base legal para a aplicação da Justiça Restaurativa no sistema de justiça juvenil.

 

3.2 Resoluções do Ministério da Educação e do Ministério da Justiça

Nos últimos anos, o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) também editaram normativas que fazem menção à Justiça Restaurativa como parte de políticas públicas integradas. Destacam-se:

       Portaria MEC nº 1.579/2018, que inclui

práticas restaurativas na política nacional de combate à violência escolar.

       Portaria MJSP nº 511/2022, que institui a Rede Nacional de Justiça Restaurativa, com foco na articulação entre órgãos públicos, universidades e organizações da sociedade civil.

Esses instrumentos demonstram o reconhecimento crescente da Justiça Restaurativa como ferramenta transversal, capaz de contribuir com a educação, a segurança e a inclusão social.

4. Justiça Restaurativa e a Constituição Federal

Embora não haja menção expressa à Justiça Restaurativa na Constituição de 1988, seus princípios dialogam profundamente com os fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito, tais como:

       Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).

       Prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II).

       Devido processo legal, contraditório e ampla defesa (art. 5º, LIV e LV).

       Proteção integral de crianças e adolescentes (art. 227).

A Justiça Restaurativa também reforça o princípio da eficiência da administração pública (art. 37), na medida em que oferece soluções eficazes e menos onerosas para a resolução de conflitos. Nesse sentido, sua expansão fortalece o sistema de Justiça ao torná-lo mais ágil, acessível e humanizado.

 

Conclusão

A consolidação da Justiça Restaurativa como política pública e prática institucional depende de marcos legais sólidos, que lhe confiram segurança jurídica, coerência normativa e articulação intersetorial. No Brasil, esse processo tem avançado significativamente nas últimas duas décadas, com destaque para a atuação do CNJ, a incorporação de princípios restaurativos em legislações como o ECA e o SINASE, e o reconhecimento crescente da Justiça Restaurativa por diferentes esferas do Estado.

 

No plano internacional, a ONU e outros organismos têm promovido recomendações que orientam os países a adotarem abordagens restaurativas em consonância com os direitos humanos. A interação entre esses marcos globais e nacionais fortalece a legitimidade da Justiça Restaurativa e amplia suas possibilidades de impacto social.

 

Ainda que haja desafios a enfrentar — como a resistência institucional, a necessidade de capacitação continuada e a carência de recursos —, os avanços legais e normativos demonstram que a Justiça Restaurativa está deixando de ser uma inovação marginal para tornar-se uma política pública estruturante, capaz de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e solidária.

 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento         Socioeducativo     (SINASE). Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016. Estabelece diretrizes para a Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br.

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Portaria nº 299/2020. Institui a Política Nacional de Justiça Restaurativa. Disponível em: https://www.cnj.jus.br.

ONU – Organização das Nações Unidas. Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa. UNODC, Nova Iorque, 2006.

PRANIS, Kay. The Little Book of Circle Processes: A New/Old Approach to Peacemaking. Intercourse, PA: Good Books, 2005.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: Um Novo Foco sobre Justiça e seus Conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2008.

Voltar