COLETA DE SANGUE
Qualidade e Ética na Coleta de Sangue
A qualidade dos exames laboratoriais depende de uma série de fatores que se estendem muito além da análise técnica propriamente dita. Uma parte significativa dos erros laboratoriais ocorre antes da amostra chegar aos equipamentos de análise, ou seja, na chamada fase pré-analítica. Esta etapa envolve desde a solicitação do exame até a chegada da amostra ao setor técnico e é fortemente influenciada pelas ações do profissional responsável pela coleta. Assim, garantir a qualidade nesta fase é fundamental para a obtenção de resultados confiáveis e seguros.
O processo laboratorial está dividido em três fases principais:
1. Fase pré-analítica: inclui a solicitação médica, preparo do paciente, coleta da amostra, identificação, armazenamento e transporte até o setor técnico.
2. Fase analítica: corresponde à análise da amostra com uso de reagentes e equipamentos específicos.
3. Fase pós-analítica: envolve a validação dos resultados, interpretação, liberação e entrega dos laudos ao solicitante ou paciente.
Estudos indicam que a fase pré-analítica é responsável por cerca de 60% a 70% dos erros laboratoriais. Esses erros geralmente não estão relacionados ao desempenho do equipamento, mas sim a falhas humanas, organizacionais e de procedimento.
A coleta de sangue é uma das etapas mais críticas da fase pré-analítica. Uma coleta mal executada pode resultar em amostras inadequadas, levando a resultados incorretos, necessidade de repetição do exame e prejuízos ao diagnóstico, ao tratamento e ao bem-estar do paciente. A qualidade da amostra influencia diretamente parâmetros como:
· Hemólise (ruptura de hemácias, alterando a concentração de diversos analitos);
· Coagulação inadequada em tubos com anticoagulante;
· Volume insuficiente ou excesso no tubo de coleta;
· Contaminação por álcool ou outras substâncias externas;
· Identificação incorreta do paciente.
A atuação do profissional de coleta exige atenção aos protocolos técnicos e administrativos, além da aplicação de boas práticas de biossegurança e acolhimento humanizado.
Os erros mais frequentes na fase pré-analítica incluem:
· Identificação incorreta do paciente ou do tubo: pode resultar na troca de amostras. Prevenção: confirmação verbal dos dados e rotulagem imediata à vista do paciente.
· Uso incorreto do tubo de coleta: como escolha
inadequada do tipo de aditivo. Prevenção: conhecer a finalidade de cada tubo e seguir a ordem correta de coleta.
· Tempo prolongado de garroteamento: pode causar hemoconcentração e alterar resultados. Prevenção: limitar o uso do garrote a no máximo um minuto.
· Punção mal executada: levando à hemólise ou formação de hematomas. Prevenção: treinamento contínuo da técnica e escolha adequada do vaso.
· Volume inadequado de sangue no tubo: especialmente em tubos com anticoagulantes, o volume deve estar dentro do limite indicado. Prevenção: observar as marcas de referência nos tubos.
· Transporte inadequado da amostra: pode comprometer a integridade do material. Prevenção: uso de recipientes apropriados, controle de temperatura e tempo de transporte.
· Demora no processamento: o intervalo entre coleta e análise pode afetar a estabilidade de certos componentes. Prevenção: seguir os tempos recomendados de processamento para cada tipo de exame.
A implantação de checklists, a capacitação contínua dos profissionais e a padronização dos procedimentos são estratégias eficazes para reduzir falhas e elevar os padrões de qualidade.
A busca por qualidade na fase pré-analítica não é apenas uma exigência técnica, mas um compromisso ético com a saúde e a segurança do paciente. O profissional que atua na coleta precisa compreender seu papel como elo fundamental na cadeia diagnóstica, assumindo a responsabilidade pelas ações que precedem a análise laboratorial.
1. ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC nº 302/2005. Regulamento técnico para funcionamento de laboratórios clínicos.
2. LIMA, M. F. et al. Manual de Coleta de Materiais Biológicos para Exames Laboratoriais. São Paulo: Sarvier, 2018.
3. PITTENGER, A. L. Phlebotomy Handbook: Blood Specimen Collection from Basic to Advanced. 9th ed. Pearson, 2016.
4. HARMON, A. M. Phlebotomy Essentials. 7th ed. Philadelphia: Wolters Kluwer, 2020.
5. BRASIL. Ministério da Saúde. Boas Práticas em Laboratórios Clínicos. Brasília: MS, 2009.
A correta identificação, registro e transporte das amostras biológicas são etapas fundamentais para garantir a integridade do material coletado e a segurança de todo o processo laboratorial. Falhas nesses pontos comprometem a confiabilidade dos exames e podem resultar em erros diagnósticos, retrabalho, desperdício de recursos e, principalmente, risco ao paciente.
A identificação adequada dos
tubos de coleta é um dos requisitos mais importantes da fase pré-analítica. Segundo a RDC nº 302/2005 da ANVISA, o tubo deve ser identificado no momento da coleta, à vista do paciente, contendo ao menos o nome completo, data de nascimento, número de identificação (quando disponível) e a data e hora da coleta.
A etiqueta deve ser legível, resistente e bem fixada, sem obstruir áreas de leitura óptica, quando aplicável. A falha na identificação de tubos pode levar à troca de amostras, resultados errôneos, diagnósticos incorretos e tratamento inadequado, configurando um evento adverso grave.
Nos serviços que utilizam sistemas informatizados, a geração automática de etiquetas com código de barras garante maior agilidade, padronização e segurança na rastreabilidade das amostras. No entanto, é essencial que o profissional verifique os dados impressos e realize a conferência com a identificação verbal do paciente antes de colar a etiqueta no tubo.
Após a coleta, as amostras devem ser armazenadas de forma adequada até seu processamento. Isso inclui cuidados com posição, temperatura e tempo de armazenamento, que variam conforme o tipo de exame e o anticoagulante presente no tubo.
Exemplos comuns de recomendações:
· Amostras para hemograma (tubo com EDTA) devem ser mantidas à temperatura ambiente e analisadas preferencialmente em até 6 horas;
· Amostras para bioquímica (tubo com gel separador) podem requerer centrifugação e refrigeração a 2–8 °C;
· Amostras para coagulação (tubo com citrato) exigem manuseio delicado e transporte sem agitação.
Durante o transporte, as amostras devem ser acondicionadas em recipientes específicos, rígidos, identificados com símbolo de risco biológico, protegidos de luz solar direta e variações bruscas de temperatura. Amostras que exigem refrigeração devem ser transportadas em caixas isotérmicas com gelo reciclável.
Além disso, deve-se evitar o transporte em bolsos, mãos ou bolsas pessoais. Todo transporte deve ser rastreável e obedecer às diretrizes da instituição, respeitando a biossegurança e a legislação vigente.
Os sistemas informatizados de gestão laboratorial (LIS – Laboratory Information System) contribuem significativamente para o controle de qualidade, padronização e rastreabilidade das amostras. Desde a geração da requisição até a liberação do laudo, cada etapa do processo pode ser registrada e monitorada.
A rastreabilidade permite identificar:
· O
profissional que realizou a coleta;
· O horário da coleta e do recebimento da amostra;
· O percurso e as condições de transporte;
· Os equipamentos utilizados e os parâmetros de análise;
· Qualquer intercorrência durante o processo.
Esses dados são essenciais para auditorias, investigações de não conformidades, ações corretivas e prevenção de falhas futuras. Além disso, promovem maior transparência e segurança no relacionamento com os pacientes e com os profissionais solicitantes.
A integração entre sistemas informatizados de coleta, triagem, processamento e liberação de exames é cada vez mais adotada em serviços laboratoriais que buscam acreditação e certificação de qualidade, como a ISO 15189.
1. ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC nº 302/2005. Regulamento técnico para funcionamento de laboratórios clínicos.
2. LIMA, M. F. et al. Manual de Coleta de Materiais Biológicos para Exames Laboratoriais. São Paulo: Sarvier, 2018.
3. HARMON, A. M. Phlebotomy Essentials. 7th ed. Philadelphia: Wolters Kluwer, 2020.
4. BRASIL. Ministério da Saúde. Boas Práticas em Laboratórios Clínicos. Brasília: MS, 2009.
5. CLSI – Clinical and Laboratory Standards Institute. Specimen Labels, Content and Location, Fonts, and Label Orientation. GP33-A. Wayne, PA: CLSI, 2010.
A atuação ética e humanizada é um dos pilares fundamentais da prática em saúde. Em ambientes laboratoriais, onde o contato entre profissional e paciente pode ser breve, é essencial que cada interação seja pautada pelo respeito, pela empatia e pelo compromisso com a dignidade humana. O momento da coleta de sangue, apesar de técnico, é também uma oportunidade de demonstrar cuidado, acolhimento e escuta ativa, fortalecendo a relação de confiança entre paciente e profissional.
O sigilo profissional é um dever ético e legal de todos os trabalhadores da saúde. Ele consiste na obrigação de preservar a confidencialidade das informações obtidas durante o atendimento, incluindo dados pessoais, históricos clínicos, resultados de exames e qualquer informação compartilhada pelo paciente.
Conforme o Código de Ética dos Profissionais da Saúde, o sigilo só pode ser quebrado em situações específicas previstas por lei, como risco iminente à vida do próprio paciente ou de terceiros. Garantir a privacidade e a proteção de dados é essencial para preservar a autonomia e a integridade moral do indivíduo atendido.
Além do sigilo, o
respeito à pessoa deve permear todas as ações do profissional. Isso inclui tratar cada paciente com dignidade, independentemente de sua idade, gênero, orientação sexual, raça, condição socioeconômica ou estado de saúde. Também envolve o respeito às crenças, valores e escolhas individuais, mesmo que diferentes das do profissional.
A empatia é a capacidade de compreender os sentimentos e experiências do outro, colocando-se em seu lugar sem julgamento. No contexto da coleta de sangue, essa habilidade é essencial para lidar com situações de medo, ansiedade, dor ou resistência, especialmente em crianças, idosos ou pacientes com necessidades especiais.
Atender com sensibilidade significa perceber o paciente como um ser humano completo, e não apenas como alguém que está ali para realizar um procedimento. Isso exige escuta ativa, comunicação clara, postura acolhedora e atenção aos sinais verbais e não verbais.
Pequenos gestos como se apresentar, explicar o que será feito, perguntar como o paciente está se sentindo e respeitar seu tempo contribuem significativamente para uma experiência mais positiva. A empatia também favorece a adesão ao cuidado, reduz a tensão e melhora os resultados assistenciais.
A confiança entre paciente e profissional é construída a partir da transparência, do cuidado e da coerência nas atitudes. Um paciente que confia no profissional tende a colaborar mais durante o procedimento, expressar suas necessidades com liberdade e retornar aos serviços de saúde quando necessário.
O acolhimento, por sua vez, é uma diretriz da Política Nacional de Humanização do SUS e refere-se à escuta qualificada, sem pré-julgamentos, com responsabilidade e compromisso com a resolução das demandas do usuário. No ambiente laboratorial, acolher é receber o paciente com atenção, reduzir barreiras de comunicação e criar um ambiente de segurança e respeito.
A construção de vínculos, mesmo em interações breves, é possível quando o profissional reconhece a dimensão humana do cuidado e entende que cada pessoa que passa pela sala de coleta traz consigo uma história, medos e expectativas. O cuidado ético e humanizado é, portanto, um componente técnico, relacional e moral da prática em saúde.
1. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS: Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS. Brasília: MS, 2004.
2. CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM
(COFEN). Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Resolução COFEN nº 564/2017.
3. BRASIL. Ministério da Saúde. Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Brasília: MS, 2011.
4. HARMON, A. M. Phlebotomy Essentials. 7th ed. Philadelphia: Wolters Kluwer, 2020.
5. LIMA, M. F. et al. Manual de Coleta de Materiais Biológicos para Exames Laboratoriais. São Paulo: Sarvier, 2018.